Por Gustavo Oliveira*
As dimensões internacionais do poder fazem com que os Estados comumente se interessem por quem e de que maneira governa os outros países do sistema internacional. A partir de tal lógica, é possível compreender diversas ações das grandes potências em conflitos armados como esforços para interferir, conforme seus interesses e possivelmente em articulação com grupos locais das áreas de conflito, na composição das elites políticas que governam regiões e países estrangeiros.
O caso da invasão russa à Ucrânia parece ser mais um exemplo ilustrativo nesse sentido. Ao longo do conflito, tem sido nítido, no discurso russo, o objetivo de pôr a população ucraniana contra o presidente Volodymyr Zelensky. Vladimir Putin chegou a incitar abertamente um golpe militar contra a atual liderança ucraniana. À la Estados Unidos x Saddam Hussein, o governo russo também anunciou que buscaria levar o “regime marionete de Kiev”, Zelensky incluído, a julgamento por crimes que Moscou lhe imputa.
Com o decorrer da guerra e o início de negociações com o governo ucraniano, o apetite russo sobre a questão da mudança de regime parece ter se moderado. Em 9/3, Maria Zakharova, porta-voz do Ministério de Negócios Estrangeiros da Rússia, afirmou que Moscou não busca a derrubada da atual liderança ucraniana. Nesse sentido, Mykhailo Podoliak, membro da administração presidencial ucraniana, negou que o governo russo tenha demandado nomes específicos para o governo ucraniano nas negociações com Kiev. Todavia, nas voláteis condições da guerra, a questão de uma eventual mudança de regime promovida por Moscou na Ucrânia continua presente.
Um governo pró-russo na Ucrânia?
O aspecto central da questão da mudança de regime, evidentemente, diz respeito à possibilidade de instalação de um governo que atenda aos interesses russos em Kiev. Um mês antes do início das operações militares russas, por exemplo, o governo do Reino Unido alegou que Moscou, supostamente, considerava instalar um governo pró-russo na Ucrânia potencialmente encabeçado pelo político Ievhen Muraiev. Líder do partido Nashi (Os nossos, em ucraniano e russo), Muraiev é um crítico da possível entrada da Ucrânia na OTAN e possui um histórico de atuação em grupos políticos ucranianos considerados ideologicamente mais próximos à Rússia, como o extinto Partido das Regiões (PR).
Essa informação foi recebida com ceticismo entre observadores da política ucraniana, visto que Muraiev, apesar de seu background político, rivalizava com o partido Plataforma de Oposição – Pela Vida (OPZZh), o grupo político favorito de Moscou na Ucrânia nos últimos anos. Certamente por conta de tal rivalidade, Muraiev, inclusive, foi incluído, em 2018, na lista de sanções econômicas do governo russo. Apontando para essas questões, Muraiev negou enfaticamente qualquer articulação com a Rússia.
Além de Muraiev, o governo britânico alegou que a Rússia mantinha contatos com ex-oficiais ucranianos do governo de Viktor Ianukovych (ex-PR), presidente próximo à Rússia derrubado em 2014 no contexto dos protestos conhecidos como (Euro) Maidan. A lista de supostos contatos russos anunciada por Londres incluía o ex-primeiro-ministro Mykola Azarov, que, assim como seu então correligionário Ianukovych, estabeleceu-se na Rússia após o Maidan. Como Muraiev, Azarov negou as alegações britânicas, mas, durante a guerra, outras fontes alegaram um suposto interesse da Rússia em levá-lo ao poder em uma Ucrânia derrotada. À agência estatal russa RIA Novosti, Azarov afirmou que não descarta totalmente uma volta à política ucraniana em caso de mudança de regime.
A figura do próprio Ianukovych também tem circulado em declarações e reportagens enquanto possível governante pró-russo após uma eventual capitulação da Ucrânia. Coincidência ou não, o avião do ex-presidente esteve em Belarus no mesmo dia em que as delegações russa e ucraniana realizavam negociações nesse país. Em carta aberta aos ucranianos publicada em 8/3, Ianukovych exortou Zelensky a pôr fim ao derramamento de sangue e proceder a um acordo de paz a “qualquer custo” - incluindo a renúncia ao poder?
E o OPZZh?
Por fim, circularam informações sobre uma suposta proposta russa para a nomeação do deputado Iurii Boiko, um dos líderes do OPZZh e candidato presidencial em 2019, como primeiro-ministro da Ucrânia. O plano envolveria a permanência de Zelensky em uma presidência esvaziada, e teria sido rejeitado pelo presidente ucraniano.
Por conta de seu papel nas relações russo-ucranianas, o OPZZh merece especial atenção. Desde sua fundação, em 2018, o partido, que descende parcialmente do PR, consolidou-se como a principal força política considerada pró-russa na Ucrânia, tendo particular expressividade junto ao eleitorado do leste e sul da Ucrânia - regiões onde são mais fortes o uso da língua russa e o sentimento de proximidade à Rússia. Na esteira da eleição parlamentar de 2019, o OPZZh formou a segunda maior bancada no parlamento ucraniano, perdendo apenas para a (cerca de seis vezes maior) bancada do Servo do Povo, partido de Zelensky.
Em sua trajetória política, o OPZZh apresentou notórias convergências programáticas com os interesses russos em questões como o status da língua russa e as políticas de memória histórica na Ucrânia; a autonomia na região do Donbass, opção defendida por Moscou até o reconhecimento russo das independências das duas repúblicas secessionistas dessa região em 2022; e a orientação externa da Ucrânia. Destaca-se, nesse último ponto, o apoio do OPZZh à neutralidade da Ucrânia, isto é, a renúncia ao ingresso na OTAN.
As lideranças do OPZZh também possuem um histórico de ligações com a Rússia. No passado, Boiko, que também foi membro do PR, teve papel destacado na gestão das relações russo-ucranianas no estratégico setor de energia. Crucialmente, o partido também abriga, além da ala de Boiko, um grupo liderado pelo deputado Viktor Medvedchuk. Amigo pessoal de Putin, Medvedchuk há anos tem sido um importante interlocutor de Moscou na Ucrânia e tem conexões de negócios na Rússia. Na era Zelensky, Medvedchuk, acusado pelas autoridades ucranianas de ter mantido relações de cooperação ilegais com a Rússia e os separatistas do Donbass, tornou-se alvo de sanções da própria Ucrânia e aguarda julgamento em prisão domiciliar desde 2021.
Diante desses fatores, o governo russo, não por acaso, jamais escondeu suas afinidades com o OPZZh, como ilustrado pelos encontros com líderes do partido à época das campanhas eleitorais ucranianas. No contexto de guerra, contudo, a atuação do OPZZh, que desde o início do conflito se posicionou a favor de negociações Rússia-Ucrânia, tem sido mais complexa do que aquilo que sugerem as acusações de “quinta coluna” comumente vindas de críticos do partido.
Boiko negou categoricamente o suposto plano russo e condenou as ações militares de Moscou como uma agressão à Ucrânia. Em 8/3, o OPZZh anunciou o apoio à participação de seus membros nas forças da Defesa Territorial da Ucrânia. Esse anúncio foi feito em paralelo à tomada temporária de um cargo partidário de Medvedchuk por Boiko, o que sugere um possível escanteamento do “compadre de Putin”. O paradeiro de Medvedchuk, aliás, virou um mistério após o início da guerra. Dado seu histórico de interlocução com a elite política russa, não se pode descartar que Medvedchuk esteja tendo algum tipo de atuação nos bastidores políticos do conflito na Ucrânia.
Perspectivas e desafios para a Rússia
Deve-se ressaltar que é difícil atestar plenamente a veracidade das versões sobre a mudança de regime na Ucrânia, ainda mais levando em conta as possibilidades de manipulação de informações características das situações de guerra.
Entretanto, alguns dados indicam que o tema preocupa genuinamente o governo Zelensky. Em discurso no dia 9/3, Zelensky ameaçou severas punições a indivíduos que, conforme “sinais” que o governo ucraniano diz ter recebido, estariam interessados em articulações com a Rússia. As ameaças foram respaldadas por alterações legislativas que endureceram as punições para o crime de traição nacional em tempo de guerra. Apesar da alta coesão nacional em torno do governo ucraniano até o momento, há, de fato, registros de políticos locais sendo processados por acusações de cooperação com a Rússia.
Do lado russo, a busca ou não pela mudança de regime em Kiev deverá depender fortemente do curso das ações militares e do grau de abertura das lideranças ucranianas nas negociações sobre uma solução política da guerra. O governo Zelensky já sinalizou, por exemplo, disposição para discutir o status de neutralidade da Ucrânia, uma das principais demandas do Kremlin.
Alguns fatores levantam questionamentos sobre a viabilidade, em longo prazo, de um governo instalado e sustentado pela Rússia na Ucrânia. Uma pesquisa feita pela agência ucraniana Rating durante a guerra mostrou que bateram recordes os percentuais de disposição para defender a Ucrânia com armas e de apoio à entrada do país na OTAN. Em cidades do sul da Ucrânia, tradicional reduto do eleitorado pró-russo, houve protestos contra a ocupação por tropas russas.
Com o tempo, a exaustão da guerra e a dissipação dos ânimos exaltados podem arrefecer tais sentimentos e vontades políticas. No entanto, esses fatores, bem como a própria resistência à invasão - cuja intensidade, apesar dos consideráveis avanços militares russos, excedeu aquilo que Moscou parecia esperar -, sugerem um fortalecido senso de lealdade e pertencimento ao Estado ucraniano que pode se desdobrar em significativa rejeição a um eventual governo imposto por Moscou e submisso aos interesses russos.
Seja como for, as histórias da política internacional e das relações russo-ucranianas indicam que é preciso estender os olhares de análise para além da diplomacia formal e atentar, também, para a atuação de indivíduos e grupos de elite política. As articulações internacionais e os interesses desses atores podem ser um fator de alta relevância no curso da guerra e no desfecho político do conflito na Ucrânia.
*Gustavo Oliveira é doutorando em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP) e pesquisador do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI/PUC-SP) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU).
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.