Por Giovana Dias Branco *
Após imagens de satélite revelarem uma nova mobilização de tropas russas tanto na fronteira com a Ucrânia quanto no território da Crimeia, novas tensões surgiram entre o governo de Moscou e os países ocidentais, sobretudo os Estados Unidos e os membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). A nova preocupação ocidental consiste na possibilidade de uma invasão russa ao território ucraniano, com o suposto objetivo de manter sua influência e hegemonia no que tange ao espaço pós-soviético. Tal narrativa, que tem se disseminado desde o final do último ano entre várias mídias de origem ocidental, consiste na construção da Rússia como um Estado com posicionamentos agressivos no sistema internacional, cuja identidade seria contrária - e por vezes inimiga - àquela promovida pelos países do chamado "mundo livre''.
Contudo, deve-se ressaltar que a atual crise é reflexo de questões e problemas de longa data. O conflito entre Rússia e Ucrânia, por exemplo, não é um fato recente, mas sim um evento constante desde 2014 com a chamada Euromaidan, e acentuado após o processo de anexação da Crimeia, ocorrida naquele mesmo ano. Desde 2014, grupos separatistas pró-Moscou, apoiados por tropas russas, lutam contra o exército ucraniano na região do Donbass em busca da separação do governo de Kiev. Entretanto, o conflito que já dura mais de 7 anos e impõe fortes sanções econômicas ao governo russo voltou a chamar a atenção internacional ao final de 2021, período em que as tensões diplomáticas entre o Kremlin e os membros da OTAN passaram a se acirrar. Em dezembro do último ano, após muitos países entrarem em alerta com os recorrentes exercícios militares russos ao redor das fronteiras ucranianas, o governo de Moscou emitiu um projeto à OTAN e outro aos Estados Unidos com suas preocupações e necessidades no que tange à segurança nacional e ao fim das tensões com o país vizinho.
Segundo tal documento, é de central importância para a manutenção da segurança russa que a OTAN retorne ao desenho institucional da década de 1990, antes das suas cinco expansões a Leste, além de não aceitar novos membros no futuro, em particular ex-repúblicas soviéticas como a própria Ucrânia. Dessa forma, o Kremlin busca aumentar a distância entre as bases da organização e o entorno russo, tendo em vista a percepção de que a OTAN seria, atualmente, um mecanismo de projeção de força global dos Estados Unidos. A tentativa de garantir a neutralidade do seu "estrangeiro próximo", expressão usada para se referir à esfera de influência reivindicada pela Rússia, é proveniente de um imaginário de invasões por parte dos russos, que viram a absorção de seu entorno estratégico em diversos períodos de enfraquecimento interno, levando-os a crer que a manutenção da segurança interna depende das restrições ao processo de expansão dos membros da OTAN.
Apesar de tal percepção de ameaça ter sido formalizada no documento publicado em dezembro de 2021, desde 2007 a Rússia tem vocalizado de forma mais recorrente que se sente ameaçada pelo encolhimento da buffer zone presente entre si e as bases da OTAN, reclamações que foram sistematicamente ignoradas pelo ocidente. Tais preocupações, é preciso lembrar, já existiam desde a década de 1990, período em que havia entre as lideranças russas a percepção de que Moscou seria incluída na ordem internacional, ao invés de excluída como temiam que aconteceria após a dissolução da União Soviética. Percebe-se, portanto, que há uma falta de reconhecimento mútuo, o que impede um diálogo mais profundo entre as partes e a construção de relações de confiança sólidas: por um lado, a Rússia se sente ameaçada com a expansão da organização; por outro, muitos países - inclusive a Ucrânia - desejam se juntar à OTAN por medo da atuação russa. Ademais, o alargamento dos membros da organização não representa apenas a falha do estabelecimento da hegemonia russa na região, mas também da sua própria afirmação política interna, visto que cria um precedente entre os países do espaço pós-soviético ao desamarrar laços historicamente construídos com Moscou.
A Ucrânia em meio às potências
Apesar das tensões atuais existirem em torno de uma possível invasão russa à Ucrânia, o clima de desconfiança entre o Kremlin e os membros da OTAN existe desde a criação da aliança de segurança coletiva, em 1949. Durante a Guerra Fria, Lorde Ismay, primeiro Secretário-Geral da OTAN, resumiu o objetivo da criação da organização com a frase "keep the Soviet Union out, the Americans in, and the Germans down”. Portanto, a fundação da aliança esteve vinculada à luta contra as ameaças soviética e, em menor escala, de um possível revisionismo alemão no território europeu pós-Segunda Guerra, as quais não existem desde a década de 1990. Portanto, já faz alguns anos que a Rússia vem questionando a permanência da aliança no sistema internacional, tendo em vista a atual inexistência de sua raison d'être original.
Não à toa, desde os primeiros movimentos do governo ucraniano visando uma aproximação com as potências ocidentais, intensificados após o processo de anexação da Crimeia, Vladimir Putin vem questionando até que ponto os europeus estariam dispostos a gerar laços mais profundos com a Ucrânia, tendo em vista o conflito militar que criariam contra a Rússia. Segundo o presidente Putin, apesar de os membros da Aliança Atlântica classificarem a Rússia como maior ameaça à sua segurança, o país não poderia ser classificado como aquele com comportamento agressivo, uma vez que não realizou movimentos de expansão ao encontro do Ocidente, mas sim a OTAN que se expandiu em relação aos russos e promoveu intervenções em diversas regiões, tornando-se igualmente uma ameaça. Dessa forma, apesar de o palco das atuais tensões ser o território ucraniano, é possível identificar interesses divergentes entre as potências que superam as próprias demandas e preocupações de Kiev.
Não obstante, é inegável a importância da Ucrânia para as concepções de política externa russa: por parte da Rússia, o território ucraniano, durante todo o período da Ucrânia independente, carregou uma importância geopolítica devido ao acesso ao Mar Negro, além da localização da base militar de Sevastopol, na Crimeia, a qual carrega importantes contingentes russos. Ademais, é pela Ucrânia que passam os principais gasodutos que ligam a Rússia à Europa, atualmente principal consumidora do gás natural russo. Além dos interesses econômicos e geopolíticos, há também uma narrativa identitária que une Moscou e Kiev, visto que a Ucrânia teria um papel central no mito fundador do nacionalismo russo ao ser, em sua capital, o berço daquele que é considerado o primeiro grande precursor da Rússia moderna: o Estado medieval da Rus’ Kievana. Dessa forma, a Ucrânia, para a Rússia, torna-se um dos principais atores da buffer zone que separa a Rússia das potências europeias, sendo inaceitável, do ponto de vista de Moscou, a sua aproximação da Aliança ou mesmo da União Europeia.
O que esperar do conflito
Racionalmente, um conflito armado não é de interesse nem na Rússia nem das potências ocidentais, visto que não seria possível haver vencedores em uma guerra envolvendo o risco de forças nuclearizadas. Embora as perdas humanas e econômicas sejam elementos de dissuasão suficientes para impedir um confronto direto em torno do território ucraniano, é preciso ressaltar uma diferença fundamental entre a Rússia e os membros da OTAN: a forma como enxergam a escalada de violência. De forma geral, os russos praticam uma escalada variável e moderada, isto é, que se intensifica e suaviza de acordo com as respostas dadas pela outra parte; enquanto a OTAN pratica uma escalada ascendente e constante, sempre elevando os níveis de tensão com seu adversário, embora venha descartando uma intervenção direta em território ucraniano. Dessa forma, a Rússia tem verbalizado sua preocupação com o envio de tropas e armamentos para o país vizinho e ressaltado sua escolha preferencial pela paz na região, ao mesmo tempo em que realiza exercícios militares constantes nas fronteiras como forma de intimidação e exibicionismo. Por outro lado, a OTAN diz preferir o caminho diplomático e do diálogo enquanto envia cada vez mais contingentes para a região e cria um clima de ameaça iminente.
Até o momento, os líderes russo e norte-americano vêm capitalizando sobre a atual crise como forma de reforçar seus projetos nacionais internamente aos seus respectivos países.. Embora não seja possível prever se o conflito sofrerá uma escalada de violência, é possível dizer que a via diplomática permanece sendo o caminho sugerido por ambos, e que o aumento das tensões na região causa três efeitos imediatos: a desestabilização do continente europeu, o qual já vive uma onda de ascensão de governos conservadores que podem se fortalecer com a pauta da (in)segurança nacional; o fortalecimento de uma narrativa norte-americana que promove a Rússia como agressiva e inimiga do "mundo livre"; e o fortalecimento das relações sino-russas tanto em termos econômicos quanto estratégicos.
*Giovana Dias Branco é mestranda em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP) e pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI/PUC).
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.