Por Ana Luísa Calvo Tibério *
Em 1994, foi institucionalizado o sistema de segregação racial na África do Sul, que distinguia os habitantes negros da população minoritária branca. Quase 30 anos depois, os palestinos têm reivindicado o termo elaborado para descrever esse regime de bantustões sul-africanos — apartheid — para explicar o modo que Israel tem encontrado para manter assentamentos ilegais exclusivamente judeus na Cisjordânia e perpetuar uma situação de desigualdade inerente. Contudo, a maior parte dos israelenses e da comunidade internacional ainda rejeitam a terminologia do apartheid para classificar a ocupação israelense dos territórios palestinos – o que pode ter imputações legais, inclusive.
É por isso que os ex-embaixadores israelenses na África do Sul, Ilan Baruch e Alon Liel, afirmam: está na hora do mundo todo reconhecer que o que acontece nos territórios palestinos ocupados “é apartheid”. Em texto publicado em inglês, eles sustentam que suas experiências práticas os fizeram conhecer a realidade do apartheid e compreender a dura realidade enfrentada pelos palestinos na Cisjordânia. Ainda, afirmam que é preciso união e solidariedade mundial para combater a segregação hoje em curso.
A leitura do texto de Baruch e Liel é, portanto, fundamental para aqueles que querem compreender a questão palestina e até mesmo para sanar dúvidas que ainda podiam restar. Reafirmemos: “é apartheid”.
Segue a íntegra da tradução do texto de Ilan Baruch e Alon Liel, publicado originalmente em inglês no website de Norman Finkelstein, cientista político americano judeu, especialista em estudos sobre Palestina e Israel:
Durante nossas carreiras no serviço estrangeiro, ambos servimos como embaixadores de Israel na África do Sul. Nesta posição, aprendemos em primeira mão sobre a realidade do apartheid e os horrores que ele gerou. Mas, mais do que isso, a experiência e a compreensão que adquirimos na África do Sul nos ajudaram a entender a realidade em casa.
Por mais de meio século, Israel governou os territórios palestinos ocupados com um sistema legal de duas camadas, no qual, dentro do mesmo pedaço de terra na Cisjordânia, colonos israelenses vivem sob a lei civil israelense, enquanto os palestinos vivem sob a lei militar. O sistema é de desigualdade inerente. Nesse contexto, Israel tem trabalhado para mudar tanto a geografia quanto a demografia da Cisjordânia por meio da construção de assentamentos, que são ilegais segundo o Direito Internacional. Israel avançou com projetos para conectar esses assentamentos a Israel propriamente dito, por meio de investimentos intensivos em desenvolvimento de infraestrutura, e uma vasta rede de rodovias e infraestrutura de água e eletricidade. Assim, transformaram o empreendimento de assentamentos em uma versão confortável de subúrbio. Isso aconteceu juntamente com a expropriação e aquisição de grandes quantidades de terras palestinas, incluindo despejos e demolições de casas palestinas. Ou seja, assentamentos são construídos e expandidos às custas das comunidades palestinas, que são forçadas a ocupar áreas cada vez menores.
Essa realidade nos lembra uma história que o ex-embaixador Avi Primor descreveu em sua autobiografia sobre uma viagem que fez com o então Ministro da Defesa, Ariel Sharon, à África do Sul, no início dos anos 1980. Durante a visita, Sharon expressou grande interesse no projeto de bantustões da África do Sul. Mesmo uma rápida olhada no mapa da Cisjordânia deixa poucas dúvidas sobre de onde Sharon recebeu sua inspiração. A Cisjordânia hoje consiste em 165 “enclaves”, ou seja, comunidades palestinas cercadas por territórios tomados pelo empreendimento colonial. Em 2005, com a remoção dos assentamentos de Gaza e o início do cercamento, Gaza se tornou simplesmente outro enclave: um bloco de território sem autonomia, cercado em grande parte por Israel e, portanto, efetivamente controlado por Israel também.
Os bantustões da África do Sul sob o regime do apartheid e o mapa dos territórios palestinos ocupados hoje se baseiam na mesma ideia de concentrar a população “indesejável” na menor área possível, em uma série de enclaves não contínuos. Ao expulsar gradualmente essas populações de suas terras e concentrá-las em bolsões densos e fragmentados, tanto a África do Sul quanto Israel hoje trabalharam para impedir a autonomia política e a verdadeira democracia.
Esta semana, marcamos o 55º (quinquagésimo quinto) ano desde o início da ocupação da Cisjordânia. Está mais claro do que nunca que a ocupação não é temporária e não há vontade política do governo israelense para levar a cabo o seu fim. A Human Rights Watch concluiu recentemente que Israel ultrapassou um limiar e suas ações nos territórios ocupados agora atendem à definição legal de crime de apartheid segundo o Direito Internacional. Israel é o único poder soberano que opera nesta terra e discrimina sistematicamente com base na nacionalidade e na etnia. Tal realidade é, como vimos, o apartheid. É hora de o mundo reconhecer que o que vimos na África do Sul décadas atrás está acontecendo também nos territórios palestinos ocupados. E, assim como o mundo se juntou à luta contra o apartheid na África do Sul, é hora de o mundo tomar medidas diplomáticas decisivas em nosso caso também e trabalhar para construir um futuro de igualdade, dignidade e segurança para palestinos e israelenses.
(Ilan Baruch serviu como embaixador israelense na África do Sul, Namíbia, Botswana e Zimbábue. Dr. Alon Liel serviu como Embaixador de Israel na África do Sul e como Diretor Geral do Ministério de Relações Exteriores de Israel)
*Ana Luísa Calvo Tibério é bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo e graduanda em Relações Internacionais pela PUC-SP. É também pesquisadora do GECI.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.