Mariana Bernussi* e Tales de Paula Roberto de Campos**
No domingo (03/10), o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) divulgou o Pandora Papers, uma investigação global de 12 milhões de documentos de 14 empresas offshore distintas. A sua divulgação causou grande alvoroço internacional, uma vez que os documentos implicam na revelação de segredos financeiros de mais de 300 políticos, incluindo atuais e ex-chefes de Estado ou de Governo de 91 países. Entre os nomes de destaque expostos pela investigação estão o do ex-primeiro-ministro do Reino Unido, Tony Blair, assessores e ministros do presidente da Rússia, Vladimir Putin, e o dos brasileiros Paulo Guedes, atual ministro da economia do governo Bolsonaro, e Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central.
Os documentos revelados pela equipe de jornalistas constatou a existência de negócios ligados a Estados e territórios já conhecidos por abrigar esses tipos de contas: Ilhas Virgens Britânicas, Panamá, Ilhas Seychelles, Hong Kong, entre outros. O Pandora Papers também impressiona pela vastidão de dados recolhidos pela ICIJ. A maioria das contas foram criadas entre 1996 a 2020 e teriam movimentado cerca de 11,3 trilhões de dólares em capital cuja procedência é desconhecida.
Apesar do ineditismo dos fatos apresentados, já faz algum tempo que o jornalismo tem revelado casos variados de autoridades, filantropos e celebridades milionárias com capital não-declarado em ilhas tropicais ou importantes enclaves comerciais protegidos com sigilo de informações. Desde então, pouco tem sido discutido nos meios bancários sobre novas medidas que pudessem evitar a continuidade de crimes financeiros como a sonegação de impostos ou lavagem de dinheiro. O questionamento que permanece após as revelações do Pandora Papers é: por qual motivo os mecanismos de alocação de capital no exterior não sofreram profundas alterações sistêmicas mesmo depois de inúmeras denúncias como as apresentadas pela ICIJ? Entender os principais pontos de discussão (os territórios cercados por privilégios privados, quem tem a possibilidade de transferir dinheiro para contas offshore e o posicionamento internacional) é parte central deste processo reflexivo.
O que significa ter uma offshore em um paraíso fiscal
Empresas offshore, ou empresas extraterritoriais, é o nome dado a empresas que operam em territórios com menor tributação em comparação ao país de origem de seus proprietários, conhecidos como paraísos fiscais. São países com pouca transparência e baixa fiscalização, que adotam regimes de fiscalidade privilegiada e permitem a abertura de empresas ou contas bancárias anônimas. Para tal, é necessário apenas a existência de um procurador, administrador ou intermediário, o que no linguajar popular brasileiro é conhecido como “laranja”. Assim, a informação sobre a identidade do real dono da offshore não é pública.
Um exemplo de território pautado como regime fiscal privilegiado é o caso das Ilhas Virgens Britânicas, um conjunto de arquipélagos pertencente ao território ultramarino do Reino Unido localizado no Caribe, a leste de Porto Rico. Dos aproximadamente 27.800 habitantes, 23 mil moram em Tortola, a maior ilha e onde está localizada a capital, Road Town. Apesar de o setor econômico mais importante deste território ser o turismo, os chamados “serviços financeiros” constituem 51,4% do orçamento do governo local, recolhidos por meio de licenças para operação de contas e empresas offshore. As Ilhas Virgens Britânicas se tornaram “tax haven” em meados dos anos 1970, registrando tais empreendimentos de forma ampliada a partir da década de 1980. As estatísticas oficiais mais recentes disponibilizadas pelo governo apontavam para cerca de 448 mil offshores ativas (e 950 mil companhias inativas) no arquipélago em 2012.
Em termos burocráticos, abrir uma conta offshore nas Ilhas Virgens Britânicas é simples, pode levar de dois a três dias apenas e não requer atendimento presencial. Terminado este período, o dono da empresa terá um endereço oficial (a maioria das companhias sequer tem sede física em Road Town), uma conta corrente aberta para a realização de operações em dólar e isenção de taxas ou qualquer iniciativa de contabilidade por auditorias virginenses. Assim como o registro pode ser considerado “fictício”, o capital tampouco fica retido no arquipélago, mas é distribuído em metrópoles cosmopolitas muito mais seguras para o depósito de dinheiro.
De acordo com a lei brasileira, por exemplo, é permitido que um cidadão tenha offshore ou conta no exterior, desde que declare suas atividades financeiras à Receita Federal e ao Banco Central e pague os devidos impostos. Caso contrário, suas ações se enquadram como "crime de colarinho branco", termo criado em 1940 pelo criminologista Edwin Sutherland, associado às ações praticadas pela alta classe política e econômica, ou, nas palavras do autor, “homens profissionais e de negócios”, relacionadas as ilegalidades praticadas no mercado financeiro como fraudes bancárias, falsificação de dados públicos, suborno de autoridades, desvio de verbas, favorecimento ilegal em contratos, ocultação de patrimônio, evasão fiscal e lavagem de dinheiro.
Vazamentos e escândalos anteriores
O Pandora Papers não é a primeira revelação desse tipo já feita. Desde 2013 o ICIJ tem se dedicado, em parceria com jornalistas e veículos de imprensa em diversos países, a investigar documentos vazados.
O maior, e talvez mais famoso vazamento até então, ficou conhecido como Panama Papers. Trata-se de um conjunto de 11,5 milhões de documentos acumulados desde a década de 1970, filtrados pelo Wikileaks e pelo ICIJ, e publicados em abril de 2016. Os documentos contêm dados vazados do escritório de advocacia panamenho Mossack Fonseca sobre empresas offshore ligadas tanto a políticos e seus amigos pessoais, como no caso do ex-presidente da Argentina, Mauricio Macri e do presidente russo Vladimir Putin, quanto a celebridades, como o jogador de futebol Lionel Messi, o ex-presidente da UEFA Michel Platini e o cineasta espanhol Agustín Almodóvar. Algumas das reações imediatas à revelação envolveram a demissão de políticos de seus cargos, como no caso do ex-primeiro-ministro islandês Sigmundur David Gunnlaugsson.
Em 2017, o ICIJ divulgou o Paradise Papers, uma investigação majoritariamente sobre esquemas de evasão fiscal a partir de dados vazados de um escritório de advocacia nas Bermudas, e que implicou diversas celebridades, como a Rainha Elizabeth, da Inglaterra, o piloto de Fórmula 1 Lewis Hamilton e o cantor Bono Vox (U2), além de grandes corporações, como Apple, Nike e o banco russo VTB. Em 2020, a divulgação do Luanda Leaks permitiu a abertura de uma série de investigações contra Isabel dos Santos, até então a mulher mais rica da África, ex-chefe da gigante petrolífera Sonangol e filha do ex-presidente de Angola, José Eduardo dos Santos.
O que todos esses escândalos e vazamentos de dados têm em comum? Para além das semelhanças entre os locais, os métodos de ação e as motivações, esses casos nos dizem muito sobre o comportamento de uma elite global composta pelos indivíduos mais ricos do mundo, interessados em alocar recursos próprios em locais livres de grandes flutuações financeiras sem ingerência dos governos nacionais por meio de taxações ou investigações sobre a origem e o uso deste dinheiro.
O que muda com a abertura da Caixa de Pandora?
Ainda que esses casos sejam conhecidos dos reguladores do mercado financeiro, a predisposição para impedir que novos crimes financeiros ocorram parece estar desacreditada. A atuação de instituições de monitoramento, como por exemplo a Transparência Internacional, demonstra a ausência de medidas de enforcement a nível organizacional que imponham maiores custos sobre infratores no mercado financeiro. De forma incisiva, a declaração da organização sobre o Pandora Papers cobra reformas profundas para lidar com esse sistema de concentração de capital.
Em termos práticos, o número de investigações que foram bem-sucedidas em rastrear o capital localizado em offshores é mínimo, um indicativo de como há uma letargia por parte do sistema financeiro internacional em lidar com estes temas. Além disso, as revelações do Pandora Papers sobre o envolvimento de líderes políticos de alto escalão, como o ex-primeiro ministro inglês, Tony Blair, e o próprio ministro da economia do Brasil, Paulo Guedes, também demonstram como os próprios atores que teriam o poder e a responsabilidade de barrar ou dificultar tais mecanismos na verdade financiam a própria existência de regimes fiscais privilegiados. Com isso, talvez possamos considerar que apesar da comoção gerada após a divulgação dos Pandora Papers, essa pode ser mais uma revelação que em breve entrará no esquecimento, até que um novo escândalo seja revelado.
Evidentemente, parte desse posicionamento tem como base a manutenção de uma lógica que favorece a fuga de capital do Sul para o Norte Global, o que afeta a distribuição de bens e serviços em todo o globo. No caso de países como o Brasil, a concentração de renda também favorece este sistema. É sintomático que, de acordo com o Pandora Papers, os sócios das vinte maiores empresas brasileiras, como Prevent Senior, Grendene, Crefisa, Riachuelo, Banco Inter e MRV Engenharia, e os maiores devedores brasileiros de impostos (que juntos acumulam R$ 16,6 bilhões), como o empresário Eike Batista, tenham offshores e contas em paraísos fiscais. Desta forma, as maiores vítimas indiretas dessa prática são a economia e a democracia de países do Sul Global.
Em um contexto de desemprego elevado, crescimento do número de pessoas em situação de pobreza e de aumento da inflação no Brasil, ter uma offshore é uma realidade muito distante da grande maioria da população, sendo um privilégio para poucos. O brasileiro ocupado em um emprego formal ganha aproximadamente R $1.326,00 por mês - valor que não cobre a taxa para abertura de uma empresa de fachada, seja na Ilha de Man ou nas Ilhas Bermudas (acima de US$ 2.000,00 ou mais de R$ 11.000,00). A disparidade dos números já escancaram esta realidade.
*Mariana Bernussi é Professora de Relações Internacionais da Universidade Anhembi Morumbi e da PUC-SP, pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI) e do Núcleo de Estudos Transnacionais para Segurança (NETS) da PUC-SP.
** Tales de Paula Roberto de Campos é Doutorando no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP) e pesquisador do Núcleo de Estudos Transnacionais da Segurança (NETS/PUC-SP).
Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.