Capitalismo Ilícito: As atividades ilegais das corporações farmacêuticas na expansão do mercado de opioides nos EUA

Laurence F. Doud III, ex-chefe executivo da Rochester Drug Cooperative se entregou aos agentes da DEA em abril de 2019 (Dave Sanders - New York Times)
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Por Leonardo Barreto e Paulo Pereira

O lícito e o ilícito andam de mãos dadas

No dia 23 de abril de 2019, a distribuidora atacadista de medicamentos Rochester Drug Cooperative e seus ex-executivos, Laurence F. Doud III e William Pietruszewski foram formalmente acusados pelas autoridades federais dos EUA por conspiração para o tráfico de medicamentos opioides controlados (oxicodona e fentanil) que eram distribuídos para uso sem prescrição médica correspondente.

Este fato se insere no contexto da grave crise que os Estados Unidos enfrentam desde 1999 em decorrência da expansão do uso de opioides por parte de sua população. De acordo com o CDC (Centers for Disease Control and Prevention), de 1999 a 2017, mais de 700.000 pessoas morreram em decorrência de overdose de drogas, das quais quase 400.000 envolveram o uso de algum opioide. Em 2017 foi registrada uma média de 130 mortes diárias por overdose de opioides no país.

Tal expansão decorre, em grande medida, da evolução de um mercado lícito de medicamentos analgésicos opioides nas últimas duas décadas, estruturado em torno da articulação entre os interesses de grandes corporações farmacêuticas transnacionais e o governo estadunidense. Na contramão do senso comum, no entanto, para além da sua atuação no âmbito lícito, tais corporações parecem ter se envolvido também em atividades ilegais para a expansão deste mercado. A acusação envolvendo a Rochester Drug Cooperative foi a primeira na qual se acusou uma corporação farmacêutica pelo crime de tráfico de drogas, mas não foi a primeira vez que corporações farmacêuticas foram acusadas por atividades ilícitas.

De fato, nas últimas décadas, a defesa dos seus interesses encontrou espaço nos mais altos níveis da estrutura governamental dos EUA. A relação entre controle e mercantilização das drogas desencadeou um mercado multibilionário no qual estas corporações desempenharam um papel central em diversos escândalos de corrupção e atos criminosos, tornando as fronteiras entre o lícito e o ilícito uma ficção útil.

Uma investigação conduzida pela Science Magazine em 2018 mostrou que conselheiros independentes contratados pela FDA (Food and Drug Admnistration) para supervisionar a aprovação de medicamentos, receberam apoio financeiro das próprias corporações que deveriam avaliar. De 107 médicos conselheiros entre 2008 e 2014, 66 receberam valores que variaram entre US$ 1 mil e US$ 1 milhão. Neste período foram aprovados 28 medicamentos. Soma-se a este conflito de interesses um processo que ficou conhecido como FDA’s Revolving Door. As leis federais e as regras internas da agência federal, que tem como uma de suas principais funções, a supervisão, aprovação e regulamentação de medicamentos, proíbem que seus funcionários e conselheiros recebam benefícios indevidos das corporações. No entanto, pesquisadores do British Medical Journal (BMJ) que investigaram funcionários da FDA responsáveis por análises de medicamentos na área de oncohematologia descobriram que 15 de 26 migraram para corporações da indústria farmacêutica. Em outra pesquisa realizada pela Science Magazine, 11 de 16 examinadores médicos que trabalharam na aprovação de 28 drogas deixaram a agência para trabalhar nas próprias corporações que regulavam.

Marketing ilegal: Os casos das corporações Insys Therapeutics e Purdue Pharma

A lista é extensa. No início de maio deste ano, o ex-presidente da Insys Therapeutics, John Kapoor, foi condenado por pagamentos de propinas para médicos. Estes pagamentos tinham por objetivo aumentar o número de prescrições do medicamento Subsys, um spray de fentanil que pode ser 100 vezes mais potente do que a morfina. O spray havia sido aprovado pela FDA para o tratamento de dores em pacientes com câncer terminal, mas estava sendo receitado para diversos tipos de dores, inclusive crônicas. Investigações ainda apontam que a equipe de vendas da Insys Therapeutics contratava representantes de vendas jovens e atraentes, incluindo ex-strippers e as instruíam a seduzir e acariciar as mãos dos profissionais de saúde enquanto os convenciam da necessidade de aumento de prescrições destas receitas. A empresa também oferecia aos médicos altos valores por palestras em eventos médicos de pouca expressão na comunidade científica. A frequência de participação dos médicos nestas palestras lucrativas, que foram classificadas como pagamento de propinas pelos promotores, era diretamente relacionada com a frequência de prescrições do Subsys. Apenas em 2016 a empresa realizou 18.000 pagamentos para profissionais especializados no tratamento de dores de cabeça e das costas

É um virtual consenso nos EUA que a Purdue Pharma, responsável pela produção do Oxycontin, foi um dos principais motores geradores da expansão do mercado de opioides nos EUA. Prescrito em quantidades alarmantes no país nas últimas duas décadas, estima-se que a Purdue Pharma obteve uma receita de US$ 35 bilhões com a sua venda desde o seu lançamento em 1996 e, da mesma forma que outras, esta corporação se utilizou de um marketing agressivo e ilegal para aumentar as prescrições de Oxycontin de 670 mil em 1997 para 6.2 bilhões em 2002.

Processada em 2007, a Purdue Pharma se declarou culpada e foi multada em US$ 600 milhões em decorrência das agressivas campanhas de vendas para expandir as vendas de Oxycontin. A corporação admitiu ter treinado seus representantes para alegar falsamente que o medicamento era menos viciante e mais seguro em relação aos outros opioides disponíveis no mercado. Os principais executivos da empresa também foram condenados ao pagamento de multas e prestação de serviços comunitários. Na mais recente condenação em 2019, a empresa foi responsabilizada pela Justiça do estado de Oklahoma pelas estratégias de marketing ilegal que resultaram em milhares de mortes por overdose.

Pressão pública e medidas de contenção

A crescente pressão pública nacional e internacional direcionada ao governo estadunidense para a adoção de medidas de contenção da crise resultou na redução parcial dos índices de prescrições médicas de opioides nos EUA nos últimos anos que, apesar de ainda elevados, fazem com que as corporações repensem suas estratégias de expansão visando a abertura de novos mercados para assegurar a lucratividade de suas operações.  Este cenário traz também centralidade às organizações criminosas transnacionais (principalmente as de origem mexicana) que atuam para suprir a alta demanda de uma população dependente que passa a recorrer a mercados ilícitos de fácil acesso para obtenção destas substâncias. A Substance Abuse and Mental Health Services Administration, agência do Departamento de Saúde dos EUA estima, por exemplo, que 79,5% dos usuários de heroína registram um histórico de uso indevido de analgésicos lícitos.

As estratégias de contenção da crise são questionáveis e produzem resultados ainda incertos que necessitam avaliação posterior. Um relatório da Public Citizen que catalogou as principais condenações e acordos financeiros legais entre corporações farmacêuticas e governos estaduais e federal entre 1991 e 2017 apontou que em 2016 e 2017 os números de acordos legais foram baixos e com quantias financeiras consideradas pouco adequadas no contexto da crise. Além disto, a aplicação de penalidades criminais em âmbito federal foi praticamente inexistente.

Conclusão

Apesar do alto número de mortes registrado por overdose também em decorrência do uso de drogas ilícitas advindas das organizações criminosas, as corporações farmacêuticas desempenharam uma função primordial na crise estadunidense. As estratégias corporativas que visavam a expansão do mercado de opioides no país foram concebidas nos últimos anos através de diversas táticas de marketing ilegal, omissão de efeitos colaterais e conluio com atores públicos em níveis estaduais e federal, principalmente com as agências responsáveis pela aprovação de novos medicamentos.

Neste  cenário, duas questões surgem para debate: quais os limites da atuação lícita das corporações farmacêuticas transnacionais, ou, de maneira mais assertiva, a partir do momento que corporações estão conectadas com o tráfico ilícito de medicamentos e com outros diversos crimes, estes limites já existiram? O que já se sabe é que nas últimas duas décadas, o que era categorizado como lícito esteve constantemente em meios ilícitos e vice-versa.

Sobre os autores:

  • Paulo Pereira é docente do Departamento de Relações Internacionais da PUC-SP e do Programa de Pós-Graduação em Relação Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP)
  • Leonardo Barreto é pesquisador do GECI e mestrando do Programa de Pós Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP)