O Encarceramento Feminino no Brasil

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Implicações sobre punições às mulheres no crime

Por Fernanda Furlani Isaac e Tales de Paula Roberto de Campos

Ao nos depararmos com dados como o de que as prisões brasileiras apresentam a quarta maior população carcerária feminina do mundo, com cerca de 42 mil mulheres presas (INFOPEN, 2018), torna-se evidente que o encarceramento feminino é um assunto de grande relevância quando analisamos o Brasil e, portanto, devem ser feitos mais estudos a seu respeito, de modo a superarmos análises superficiais e incompletas do fenômeno.

No crime, as mulheres encontram-se na pobreza – fator que as impulsiona para o envolvimento com atividades consideradas ilícitas e, consequentemente, ao encarceramento. De acordo com o Relatório do Desenvolvimento Humano 1995, “a pobreza tem o rosto de uma mulher – de 1.3 bilhão de pessoas na pobreza, 70% são mulheres.” Contudo, este não é um fator que se reduz ao Brasil. Em um estudo realizado em 176 países, chegou-se à conclusão de que mulheres com formação escolar até o secundário se veem forçadas a recorrer ao tráfico de drogas para a subsistência. O desemprego entre as mulheres também é um fator considerável para o engajamento em atividades ilegais. Apesar do avanço no nível educacional feminino, o que tende a aumentar suas chances de inclusão no mercado de trabalho, elas também possuem, concomitantemente, maiores oportunidades no submundo do crime, o que explicaria o aumento da criminalidade feminina (CLOUTIER, 2016).

Quando analisamos o perfil das mulheres encarceradas, percebe-se um padrão: a grande maioria é negra ou parda, já fora alvo de algum tipo de violência (física, sexual, psicológica), com baixo nível de escolaridade, fruto de uma família desestruturada e presa por tráfico de drogas. A partir desse conhecimento, não se pode ignorar tal regularidade, uma vez que tratar similaridades como coincidências é uma forma extremamente simplista e incompleta de se lidar com os fenômenos sociais.

De fato, o Brasil é um país desigual. Da mesma maneira, o sistema carcerário é desproporcional em relação ao seu atendimento a homens e mulheres. Deve-se levar em consideração que a universalização desse sistema, inicialmente criado por homens e para homens, é algo perigoso e que só tem a prejudicar as minorias, com destaque ao grupo feminino. As mulheres apresentam demandas e necessidades diferenciadas àquelas manifestadas pelo grupo masculino e, por isso, o reconhecimento da importância da análise do encarceramento feminino enquanto uma categoria única e particular é um passo fundamental para a sua compreensão.

A questão feminina possui uma especificidade fundamental: as mulheres são, geralmente, as responsáveis por seus filhos, seja aqueles que geraram durante o período pré-cárcere, seja aqueles que nasceram entre as grades. No primeiro caso, o encarceramento da mãe gera uma devastadora desestruturação familiar, uma vez que esses filhos, que não estão mais sobre a sua tutela, têm de transitar entre casas de familiares e abrigos de adoção. Já, no segundo caso, a gravidez durante o cárcere se mostra traumática. As mulheres não dispõem de auxílio adequado durante o período da gestação, assim como não usufruem de uma estrutura apropriada após o parto, pelo contrário, seus filhos nascem presos, como elas. A partir disso, percebe-se, portanto, que o sistema prisional brasileiro é estruturado com base em um entendimento machista e patriarcal, o qual negligencia as necessidades específicas da mulher encarcerada, aprofundando ainda mais sua exclusão e opressão frente à sociedade.

Assim como o tráfico de drogas é a principal causa para o encarceramento no Brasil, trata-se do principal tipo de infração cometido por mulheres. De acordo com o INFOPEN (2018), “crimes relacionados ao tráfico de drogas correspondem a 62% das incidências penais pelas quais as mulheres privadas de liberdade foram condenadas ou aguardam julgamento em 2016, o que significa dizer que 3 em cada 5 mulheres que se encontram no sistema prisional respondem por crimes ligados ao tráfico”.

A grande maioria das mulheres, dentre as diversas posições subsidiárias existentes no tráfico, são “mulas de droga”, ou seja, traficam uma pequena quantidade de droga para que, estrategicamente, sejam repreendidas e uma maior quantidade de drogas passe despercebida pelas autoridades, posteriormente. Logo, as mulheres constituem uma “massa de manobra” para a realização de transportes e crimes em maior escala. E, conforme apontado pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), a divisão de gênero não se limita ao mercado formal de trabalho, mas também se mostra presente na organização do tráfico, a qual é marcada pela vulnerabilidade do feminino. Compreende-se, portanto, que a mulher é desamparada em todos os âmbitos, seja no domínio legal, seja no campo da ilegalidade.

No Brasil, em 2006, foi promulgada a Lei 11.343, nomeada “Lei das Drogas”, a qual endurece as penas por tráfico de drogas e, consequentemente, aumenta o encarceramento. Antes dela, 13% dos presos cumpriam sentença por tráfico, enquanto, atualmente, no estado de São Paulo, esse contingente é de 60% nas cadeias femininas (VARELLA, 2017). Por conseguinte, pode-se perceber que o aumento do encarceramento feminino se deu, principalmente, à maior delegação de poder a políticas de repressão às drogas no Brasil e à subalternização da mulher na hierarquia do tráfico.

No entanto, apesar da maior severidade legislativa observada em relação  ao tráfico de drogas, as prisões brasileiras são compostas, em sua maioria, por usuários de drogas ilícitas e pequenos traficantes, justamente porque a Lei das Drogas (2006) não define a quantidade que diferenciaria o usuário do traficante. Logo, aqueles que chefiam o narcotráfico no Brasil normalmente não são detidos, pelo contrário, os presos são, no geral, os conhecidos como “peixes pequenos”, dentre eles, as “mulas de droga”.

A partir do governo Bolsonaro, vê-se um endurecimento ainda maior das políticas de repressão ao uso e tráfico de drogas, com a aprovação do Projeto de Lei 37/2013, o qual foi transformado na lei 13.840 no dia 5 de junho de 2019. A nova Política Nacional sobre Drogas (2019) prevê o tratamento baseado na abstinência - não mais na redução de danos; no apoio a comunidades terapêuticas (geralmente de cunho religioso) e no estímulo à visão de que são as circunstâncias do flagrante que devem determinar se o indivíduo é um usuário ou um traficante. Tal modelo acaba por privilegiar a internação compulsória e distanciar o cidadão do sistema de saúde, assim como se mostra ineficaz no que tange à reabilitação dos usuários de drogas.

Em contraposição à atuação do governo brasileiro, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) permitiu o uso da maconha para produção de medicamentos, o que é considerado, por parte do governo federal, um passo para a regulamentação da substância. Desde 2015, é permitida a importação de produtos farmacêuticos à base de canabidiol, assim como aproximadamente 6.7 mil pacientes  têm tido acesso a medicamentos derivados de cannabis no Brasil, com permissão governamental. Entretanto, a medida entra em atrito com a gestão Bolsonaro, a qual é totalmente contrária a essa política.

Percebe-se, portanto, que, nos tempos atuais, o espectro político brasileiro é marcado por discussões e problematizações frente às drogas consideradas ilícitas, a fim de se determinar qual seria a melhor política a ser implementada. Contudo, não se pode falar da política de guerra às drogas, reafirmada pelo governo Bolsonaro em 2019, sem se pensar na relevância que esta exerce no aumento do encarceramento brasileiro, com destaque ao cárcere feminino. Tratam-se de temas interseccionados.

O encarceramento feminino é cíclico e, este ciclo, contempla a exclusão social, a pobreza e a opressão perante uma sociedade machista e excludente. A partir disso, a mulher, subalternizada socialmente, busca, no crime e no tráfico de drogas, uma solução para seus problemas financeiros. Contudo, por ser, muitas vezes, o “braço vulnerável” do crime organizado, acaba sendo presa pouco depois de cometer o crime, enquanto os traficantes de maior porte saem impunes. Uma vez no sistema prisional, o Estado não se preocupa em adaptar tal sistema às necessidades femininas, pelo contrário, as mulheres recebem o mesmo tratamento dado aos homens, de modo que a adequação segundo o gênero é desconsiderada.

Referências:

CANCIAN, Natália. Anvisa quer dar aval para cultivo de maconha para remédios e pesquisa. Folha de São Paulo. 07 jun., 2019.

CASTRO, Helena Salim de. Mulher: o elo mais fraco da “guerra às drogas”. Terra em Transe. 24 abril, 2017. Disponível em: https://outraspalavras.net/terraemtranse/2017/04/24/o-elo-mais-fraco-da-guerra-as-drogas/. Acesso em: 29/05/2019.

CLOUTIER, Gretchen. Latin America's Female Prisoner Problem: How the War on Drugs, Feminization of Poverty, and Female Liberation Contribute to Mass Incarceration of Women. Clocks and Clouds. Vol. 7, n° 1, 2016. Disponível em: http://www.inquiriesjournal.com/articles/1563/2/latin-americas-female-prisoner-problem-how-the-war-on-drugs-feminization-of-poverty-and-female-liberation-contribute-to-mass-incarceration-of-women. Acesso em: 20/05/2019.

DOLCE, Julia. SILANO, Ana Karoline. FONSECA, Bruno. Duplamente punidas. Agência Pública. 25 abril, 2019. Disponível em: https://apublica.org/2019/04/duplamente-punidas/. Acesso em: 19/05/2019.

FÁBIO, Cabette André. 5 pontos para entender o aprisionamento feminino no Brasil. Disponível em <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/05/16/5-pontos-para-entender-o-aprisionamento-feminino-no-Brasil> (Acesso em 20/05/2019).

INFOPEN Mulheres – 2ª edição / organização Thandara Santos; colaboração Marlene Inês da Rosa... [et al.]. – Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional, 2017.

INSTITUTO TERRA, TRABALHO E CIDADANIA. ITTC Analisa: Infopen Mulheres 2016 e marcadores sociais da diferença. Disponível em: < http://ittc.org.br/infopen-mulheres-2016-e-marcadores-sociais-da-diferenca/ > (Acesso 01/02/2019).

SALINAS, Evelyn. The Mexican Drug War’s Collateral Damages on Women. Encuentro Latinoamericano. Vol. 2, n° 2, November/2015. Disponível em: https://pdfs.semanticscholar.org/ad9a/76674818bf6708ac00b081e0452d1e650e28.pdf. Acesso em: 19/05/2019.

TELLES, Ana Clara. Mothers, Warriors and Lords: Gender(ed) Cartographies of the US War on Drugs in Latin America. Contexto Internacional. Vol. 41, n°1, jan/apr. 2019. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cint/v41n1/0102-8529-cint-201941010015.pdf. Acesso em: 19/05/2019.

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VARELLA, Drauzio. Prisioneiras. 1ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.