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Por Alcides Peron e Paulo Meirelle
“Há unidade na opressão. Deve haver unidade e determinação na resposta”. Com essa frase, o ativista australiano Julian Assange concluía uma das suas primeiras aparições públicas durante seu asilo na embaixada do Equador, em 2012, na Inglaterra. Quase 7 anos após essa condição, a mesma postura arredia e combativa do ativista veio à tona após ser arrastado por agentes de segurança britânicos para fora da embaixada equatoriana, em execução a um mandado de prisão seguido de um pedido de extradição feito pelo governo dos Estados Unidos. Mesmo após um longo período de ostracismo do Wikileaks e de seu fundador, a imagem e a violência da sua prisão rodou o mundo e vem reacendendo um debate antes relegado a alguns círculos acadêmicos: o da relevância dos whistleblowers (ativistas que denunciam atividades ilicitas de governos, empresas ou outros núcleos de poder) em um mundo em que o controle da informação tem se tornado um dos principais mecanismos de governo e de acumulação de capital. Desde 2006, o Wikileaks vem operando enquanto uma plataforma que conecta whistleblowers do mundo todo, interessados em disponibilizar informações sensíveis que contribuíssem para expor práticas abusivas de corporações, líderes, grupos políticos e máquinas de guerra. Ela garantiria total proteção àqueles que disponibilizassem as informações, ao mesmo tempo em que “vazaria” essas informações ao público em geral, empresas de jornalismo e repórteres investigativos. À época, em uma operação denominada “Cablegate”, o Wikileaks disponibilizou documentos sigilosos para grandes empresas de jornalismo, como o The New York Times, The Guardian, Der Spiegel, objetivando que a estrutura dessas grandes corporações favorecesse a triagem e organização desses documentos antes que as autoridades pudessem, de alguma forma, inviabilizá-los. Desde seu início, o Wikileaks já havia disponibilizado mais de 1 milhão de documentos confidenciais de diversas organizações, como do Pentágono, CIA, da presidência dos EUA, e de outros países. A última ação desse tipo, realizada com a prisão de Assange, incluiu informações sigilosas a respeito de práticas escandalosas de empresas como Coca Cola e líderes políticos brasileiros. Por trás do trabalho feito pelo Wikileaks está a premissa de seu fundador de que o controle da informação é um instrumento que estaria levando a uma concentração imensa de poder em alguns centros, o que comprometeria a “saúde das sociedades”. Um dos vazamentos mais importantes realizados pela organização ocorreu em 2010, e gerou enorme repercussão. Um vídeo filmado de um helicóptero “Black Hawk”, no Iraque, mostrava combatentes disparando contra um grupo de civis que se reuniam em um espaço público. Na ocasião foram mortos 12 civis, entre eles 2 jornalistas que trabalhavam para a Reuters. O vídeo recebeu o irônico título de “Collateral Murder”, em alusão às recorrentes justificativas do governo dos EUA que, ao serem confrontados com o elevado número de baixas civis resultantes de seus ataques militares, argumenta que se trata de “danos colaterais”. O vídeo expôs não apenas um crime realizado pelos militares, fruto de um desvio de conduta esporádico, mas sim o modo estadunidense de conduzir conflitos. Isto é, uma produção generalizada de desinformação, e um forte aparato de controle informacional, que objetiva blindar as práticas ilegais e abusivas perpetradas pelos EUA. Por um lado, a desinformação, levada a cabo por aquilo que o pesquisador estadunidense James Der Derian define como a “Rede Militar-Industrial de Entretenimento Midiático” (MIME-NET em inglês), garante a indiferença coletiva em relação à mobilização para o conflito. Por outro, o controle de informações sobre a guerra impede que parte da sociedade tenha acesso às atrocidades cometidas pelas Forças Armadas. [caption id="attachment_1771" align="aligncenter" width="825"] Imagem extraída do vídeo "Collateral Murder" publicado pelo Wikileaks[/caption] Diversos autores têm apontado a centralidade da informação na execução e condução dos conflitos contemporâneos. Durante os anos 1980 e 1990, o filósofo e urbanista Paul Virilio olhou para os Estados Unidos para formular sua abordagem sobre a ideia de logística militar: como ela molda as cidades e o cotidiano, e como uma determinada sociedade é impelida a aderir a um ordenamento militarista. Para ele, a guerra era algo presente na arquitetura, na organização política e burocrática, mas fundamentalmente, nas produções televisivas e jornalísticas, sendo o controle da informação um poderoso instrumento para produzir decepção no inimigo, lubrificando as engrenagens de um militarismo do cotidiano. Da mesma forma, ao longo dos últimos 20 anos, James Der Derian notou o fortalecimento do MIME-Net. Segundo o pesquisador, o exercício do poder americano transformou-se numa prática de distanciamento físico (com a introdução de tecnologias como mísseis inteligentes, drones, e linhas de telecomunicações) e moral (perceptivo, visual e mediativo) dos conflitos. De acordo Der Derian, os combatentes e a sociedade estadunidense estariam indiferentes em relação à destruição causada pelas tropas por elas, uma vez que o complexo de entretenimento militar (que se manifesta a partir de uma aproximação bastante complexa entre empresas midiáticas e o Pentágono) garantiria o filtro e a modulação das informações extraídas do conflito. Em grande medida, os vazamentos protagonizados pelo Wikileaks, seja no que tange os conflitos armados, ou as práticas de espionagem, provocam uma enorme inquietude no campo político. Os vazamentos levaram a uma intensificação da crítica da comunidade internacional ao prolongamento dos conflitos do Iraque e Afeganistão, bem como dos abusos estadunidenses em Abu Ghraib. Mais ainda, o Wikileaks abriu as portas para que iniciativas semelhantes fossem levadas a cabo por outros whistleblowers, e produzissem alterações profundas no modo como concebemos os conflitos e as dinâmicas internacionais. A primeira delas foi a do “Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos”, que em meados de 2016 liberou mais de 10 milhões de documentos confidenciais da empresa Mossak Fonsceca – que administrava offshores em paraísos fiscais – os quais detalhavam as transações e práticas de mais de 200 mil empresas, bancos, empresários e acionistas que incluíam chefes de Estado e grandes personalidades. Boa parte desse material revelou fluxos financeiros entre grupos políticos, militares, narcotraficantes, empresas de material bélico, dentre outras, apontando para uma intrincada rede de relacionamentos transnacionais ilícitos, contribuindo para estudos e investigações que tem como foco as relações entre empresas privadas e redes criminosas locais e transnacionais. Desde então, esse vazamento auxiliou na recuperação de mais de 12 bilhões de dólares em taxas e multas ao redor do mundo. Uma das mais importantes iniciativas de whistleblower dos últimos anos foi a do ex-contratado da National Security Agency (NSA), Edward Snowden, no ano de 2009. Na ocasião, o cientista de dados disponibilizou inúmeros documentos para jornalistas ligados a grandes veículos, como Glenn Greenwald e a documentarista Laura Poitras, acerca das práticas de espionagem e vigilância levadas a cabo pelos EUA e por empresas de dados, como Google e Facebook. As revelações de Snowden mostraram não apenas como o governo estadunidense espionava diretamente outros estadistas, mas também como conspirava para a derrubada destes, implantando agentes de inteligência, recrutando espiões e manipulando informações. Demonstrou também como, tanto a NSA como empresas de dados, se utilizavam de técnicas de coleta massiva e mineração de dados (Big Data), para construir um aparato de vigilância e monitoramento permanente das redes e de outros espaços, com aplicações extremamente complexas. Algumas delas podem ser exemplificadas no projeto Skynet da Força Aérea estadunidense, que passa a incorporar sistemas de coleta massiva de dados na rede dos drones armados, supostamente permitindo a identificação de pessoas e padrões de comportamento suspeitos que autorizem ataques “preemptivos”. Outras aplicações dessa prática de vigilância massiva reveladas por Snowden, foram as tramas protagonizadas pela empresa Cambridge Analytica, que a partir dos dados coletados por redes sociais e outras fontes, construía perfis de eleitores, de suas estruturas de pensamento e preferência, e passavam a fornecer serviços à empresas de marketing eleitoral e de outras naturezas, influenciando processos eleitorais em diversas regiões do mundo. Em geral, a partir das revelações protagonizadas pelo Wikileaks, e principalmente por Snowden, fomos capazes de compreender que não apenas as práticas de espionagem de Estados eram corriqueiras, mas também que a estrutura do capitalismo estava sendo alterada pela instauração de um estado de vigilância permanente. A atuação dos whistleblowers fortalece o argumento de uma sociedade de vigilância permanente, ou nas palavras da professora aposentada de Harvard, Shoshana Zuboff, de um capitalismo de vigilância. De acordo com a autora, as dinâmicas de acumulação contemporâneas são profundamente marcadas pelas práticas de coleta e comercialização massiva de dados, e imprimem nas empresas, bancos e demais atores a capacidade de “prever e modificar o comportamento humano como meio de produzir receitas e controle de mercado”. Diante disso, empresas como Google e Facebook tem adquirido uma importante relevância política, sendo a internet e o controle da informação um objeto de disputa que coloca Estados e capital privado ora em um espectro cooperativo, ora como adversários. Diante dessas revelações, diversos países têm buscado incorporar mecanismos de controle informacional e da internet, entendendo que do contrário podem ter sua estabilidade interna e integridade nacional comprometidas, como no caso da Rússia, que anunciou um projeto para uma maior autonomia da sua internet, mas que, ao mesmo tempo, também rende ao Estado russo poderosos mecanismos de controle informacional, tal como aqueles do qual visa se defender. Por sua vez, os EUA têm buscado a criação de mecanismos legais para cercear a atuação de empresas de dados, a fim de atingir grupos que promovem desinformação na web. No entanto, esses mesmos países têm sido condizentes com a perseguição de cyber ativistas no mundo todo, ligados ao desenvolvimento de softwares para criptografia e comunicação segura – algo reconhecido pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU na resolução 33/2 de 2016 como uma prática essencial para a proteção e segurança de jornalistas. Um exemplo dessa prática foi a prisão do desenvolvedor sueco Ola Bini, por um suposto envolvimento com práticas de pirataria e proximidade com o Wikileaks. Nesse cenário de crescente controle informacional (ou desinformação), vigilantismo e “dataficação” do capitalismo, a prisão de Assange, e a tentativa de setores da mídia em desacreditar e isolar os “Panama Papers”, apontam para uma ordem política e econômica em relação simbiótica com a ilicitude e extremamente dependentes de formas de controle de informação e cerceamento de liberdades. O legado mais imediato desses whistleblowers, apesar de produzir respostas cirúrgicas sobre o estado de controle ao qual estamos suscetíveis, ao contrário do sonho de união de Assange, parece nos guiar para um ambiente cada vez mais conflituoso em que a liberdade de informação segue mais em risco do que nunca.