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No início deste mês, o The Intercept Brasil trouxe à tona uma pesquisa nacional realizada pela Fiocruz que traça a dimensão do “problema das drogas” no Brasil. A pesquisa intitulada o 3º Levantamento Nacional Domiciliar sobre o Uso de Drogas apresenta dados sobre o consumo de determinadas drogas, legais e ilegais, no país, e, apesar de ter sido concluída em 2016, nunca foi divulgada pelo governo federal. O seu resultado foi embargado pelo governo do então presidente Michel Temer e demonstra que, ao contrário dos discursos de autoridades de segurança pública do país, não existe uma epidemia de drogas no Brasil.
A quem e a que tipo de política interessa a não divulgação da real situação do “problema das drogas” do país?
Por Helena Castro e Priscila Villela
Tendemos a interpretar o recrudescimento das políticas criminais visando o controle das drogas ilegais à expansão desenfreada do seu comércio e consumo na sociedade. O “problema das drogas” vem sendo politicamente abordado como uma “ameaça” à sociedade, à ordem e ao próprio Estado, de maneira que se legitima e torna necessária a mobilização de medidas emergenciais e assertivas para seu controle.
Essa abordagem ao “problema das drogas” começou a ser desenhada nos anos 1970 quando o presidente estadunidense, Richard Nixon, declarou que o abuso de drogas era o inimigo público número um dos Estados Unidos. Nos anos seguintes, foi estruturada uma política de combate ostensivo ao consumo e comércio de determinadas substâncias entorpecentes denominada de “Guerra às Drogas”. A década de 1980 marca a internacionalização dessa política para toda a América Latina, caracterizada pela adoção de políticas e operações, policiais e militares, repressivas e proibitivas. Apesar dos novos modelos que têm sido implementados em todo o mundo - como as políticas de redução de danos em Portugal e as recentes medidas de legalização do uso recreativo da maconha no Uruguai, Canadá e alguns estados estadunidenses - a política de “Guerra às Drogas” vem ganhando contornos próprios de endurecimento nos países latino-americanos.
No Brasil, predomina ainda a lógica de “guerra” e proibição. Há uma série de políticas e legislações hoje em vigor, como a criminalização do usuário, o enfoque na dimensão da repressão ao tráfico (a despeito da reduzida atenção à prevenção e tratamento), o recrudescimento das penas aos crimes envolvendo drogas, o direcionamento das ações policiais para operações antidrogas, a militarização das polícias, além do encarceramento em massa, dentre outras, que expressam tal abordagem. Diante da necessidade de apresentar uma resposta para esse “problema das drogas”, o governo e agentes de segurança optam ainda por um conjunto de ações midiáticas, a fim de aumentar os números finais de apreensão e encarceramento. Com isso, o uso da força, muitas vezes desproporcional, passa a ser justificado e inclusive demandado por parte da população aterrorizada com a “epidemia de drogas” vivida no país.
O que a omissão do governo nos indica é que sua ação não é apenas responsiva ao problema das drogas que se apresenta no país, mas que ele próprio assume um papel de criar e significar esse tal “problema” sobre o qual poderá justificar suas “soluções”. A pergunta que devemos levantar aos interesses de quem que essa “guerra às drogas” atende. Não temos a pretensão de responder categoricamente à essa pergunta, mas podemos levantar hipóteses.
O controle social contra negros e pobres no Brasil tem sido justificado pela “guerra às drogas”, ainda que seja sabido que o comércio e consumo das mesmas não se restrinjam a esse grupo populacional. Os crescentes orçamentos no campo da segurança pública e nacional também vem se justificado pela necessidade de controlar o tráfico de drogas. As prisões estão superlotadas de indivíduos acusados por tráfico de drogas, causando uma crise carcerária no país, cuja solução tem caminhado no sentido da privatização das prisões. A insegurança nas cidades tem sido relacionada às drogas, o que vem movimentando um poderoso mercado de segurança privada, para citar algumas possibilidades. As clínicas de tratamento e reabilitação ficam a cargo de entidades privadas e religiosas, interessadas sustentar um modelo baseado na internação compulsória, na moralização do consumo e na abstinência.
As ações e operações de combate ao tráfico de determinados entorpecentes geram diversas práticas violentas contra determinados setores da sociedade, especialmente pobres e negros. O Brasil apresenta índices altíssimos de violência policial. Só em 2017, as polícias brasileiras foram responsáveis por 5.144 mortes no país (14 por dia), o que representa 20% de aumento com relação ao ano anterior. No mesmo ano, 367 policiais foram mortos, 5% a menos do que no ano anterior. Vale destacar que os grandes traficantes e crimes violentos não são prioridade das ações policiais. O usuário é foco de 40% das ações policiais, fazendo com que a maior parte das apreensões se direcionem a pequenos traficantes, que carregam quantidades muito pequenas de drogas.
De acordo com os últimos dados divulgados pelo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN) em junho de 2016, o crime por tráfico de drogas aparece em 28% das incidências penais pelas quais as pessoas privadas de liberdade foram condenadas ou aguardam julgamento no país. Considerando o recorte de gênero, o aumento do número de mulheres encarceradas por envolvimento com crimes relacionados às drogas é mais alarmante. De 2005 a 2016, o percentual de mulheres presas por tráfico cresceu de 49% para 62%, levando à explosão do encarceramento feminino no país, que cresceu 698% em 16 anos. Uma vez que a maioria das mulheres envolvidas no comércio de drogas atuam nos níveis mais baixos das redes criminosas, é possível dizer que o foco das ações de combate ao tráfico ocorre no final da cadeia transnacional da droga, sem alcançar e atingir as grandes organizações narcotraficantes.
A compreensão de que o tráfico de drogas alcançava proporções cada vez mais alarmantes e gerava dados sociais cada vez mais graves legitimou tais medidas que, em situações de “normalidade” seriam condenáveis. Isso significa que um clima de urgência e excepcionalidade deve ser construído e sustentado pelas autoridades.
O atual governo apresentam discurso de que o Brasil está passando por uma “epidemia de crack”, algo que parece não se sustentar pela pesquisa em questão. O levantamento conclui que 0,9% da população usou crack alguma vez na vida, 0,3% fez uso no último ano e apenas 0,1% nos últimos 30 dias. No mesmo período, maconha, a droga ilícita mais consumida, foi usada por 1,5%, e a cocaína, por 0,3% dos brasileiros. Esses dados, segundo todos os especialistas consultados pelo The Intercept, confirmam que isso está longe de se configurar como uma epidemia.
Em razão disso, questiona-se a metodologia utilizada pela Fiocruz, que não permitiria comparação com pesquisas anteriores. A Fiocruz, por sua vez, garante que adotou a mesma metodologia da Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar (Pnad), levando às ruas mais de 300 pesquisadores e técnicos. Ainda assim, Sergio Moro, na pasta do Ministério da Justiça, afirma que não vai usar a pesquisa para desenhar a Política Nacional de Drogas, discurso este também reproduzido pelo Ministério da Saúde.
Esse posicionamento mostra como o governo não tem interesse em reconhecer a real dimensão do “problema das drogas” no país. A falta de transparência e diálogo sobre a questão das drogas no Brasil permite a manutenção de uma lógica repressiva, como ficou claro na nova Política Nacional de Drogas assinada pelo presidente Jair Bolsonaro.
No dia 11 de abril, em evento de comemoração dos 100 dias do atual governo, foram divulgadas as novas diretrizes com relação ao enfrentamento do “problema das drogas” no Brasil. Além de reforçar o posicionamento contrário à descriminalização da maconha, o documento assinala o abandono do foco em políticas de redução de danos em prol do estímulo para o tratamento baseado em abstinência e o investimento em comunidades terapêuticas - de caráter privado e religioso. Para além dos retrocessos no tratamento do usuário de drogas, a nova Política Nacional também indica uma maior repressão ao tráfico, sendo uma das diretrizes mais problemáticas a que opta que a diferenciação entre usuários e traficantes deve ocorrer com base em observações das autoridades a respeito do “local e as condições em que se desenvolveu a ação de apreensão, as circunstâncias sociais e pessoais e a conduta e os antecedentes do agente”. Se, anteriormente, com a orientação de diferenciação a partir da quantidade de drogas apreendida (mesmo sem haver uma definição específica na lei) já observava-se um caráter subjetivo nas decisões judiciais, essa nova diretriz aponta para um horizonte ainda mais desigual, em que o tratamento dado por policiais e agentes da lei aos usuários poderá ter como base a raça e o perfil socioeconômico dos mesmos.
A divulgação da nova Política Nacional sobre Drogas poucos dias depois do posicionamento contrário do governo à citada pesquisa, que apontava não haver uma epidemia de drogas no país, sustenta nossa interpretação de que existem interesses em não tornar público esses dados. Com isso, voltamos à nossa pergunta inicial: a quem e a que tipo de política interessa a não divulgação da real situação do “problema das drogas” do país?
Essa falta de acesso às informações científicas por parte da população garante um apoio expressivo às decisões governamentais que hoje alinham-se aos setores mais conservadores da sociedade brasileira, mas que atendem a grupos interesses que visam sustentar a lógica da “guerra às drogas”. O resultado é que se acentua uma abordagem repressiva e sensacionalista sobre a questão das drogas, a qual exime o Estado de tratar o consumo dessas substâncias como uma questão de saúde pública. Dessa forma fortalece-se o entendimento do “problema das drogas” a partir da ótica de segurança, o que garante uma política de exclusão, combate e encarceramento massivo da população negra e pobre do país.