Em meio a escalada de tensões entre Sérvia e Kosovo, o parlamento kosovar vota pela formalização do exército nacional. Tal movimentação poderia representar um outro passo no esforço de reconhecimento do Kosovo enquanto Estado independente.
Por Victória Perino
Os debates sobre a possível formalização de um exército têm voltado à tona no Kosovo nos últimos meses. Em 14 de dezembro de 2018, o parlamento kosovar aprovou três projetos que criam a base legal para a institucionalização de um exército regular. Não se trata, contudo, de um tema novo, dado que desde o cessar das hostilidades entre as forças albanesas e sérvias, forças da OTAN permanecem na região. As discussões sobre como e quando o Kosovo estabelecerá seu próprio exército se intensificam ano a ano, bem como os esforços do governo no sentido de transformar as atuais forças de segurança em um exército nacional.
Após a votação em dezembro de 2018, Kadri Veseli, presidente da Assembleia, anunciou: “temos oficialmente o exército do Kosovo”. Entretanto, em que medida se trata, de fato, do surgimento de uma nova força militar na região dos Balcãs?
Do Exército de Libertação Kosovar ao Corpo de Proteção do Kosovo
Ao final do conflito em 1999 entre as forças sérvias e o Exército de Libertação do Kosovo (ELK), foi aprovada no Conselho de Segurança da ONU a resolução 1244, que autorizava a entrada de forças da OTAN na região e a liderança da Organização no processo de desmobilização e desmilitarização do ELK. A proposta estabelecia que o Exército paramilitar seria dissolvido e que uma parte de seus ex-membros seria reintegrada em novas forças de segurança. Nascia, ao final de 1999, o Corpo de Proteção Kosovar (CPK), cujo caráter, alegava-se, era emergencial. Muitos analistas da política na região, tais como Donika Emini e Mentor Vrajoli, entendem que a criação desta nova força se baseava no receio, entre os membros das missões internacionais, de que os ex-membros do ELK pudessem utilizar o setor da segurança privada como uma espécie de trampolim para continuar atuando em ações militares, dado que nesse momento o setor apresentou grande crescimento na região. O Corpo de Proteção Kosovar foi a principal força de segurança a atuar no Kosovo até 2008, quando a nova Constituição determinou a sua dissolução e substituição por uma nova força: a Força de Segurança Kosovar (FSK).
Do Corpo de Proteção Kosovar à Força de Segurança do Kosovo
A Constituição que veio junto à independência unilateral proclamada em 2008 previa a dissolução do CPK e a substituição desta força por uma nova, em um processo que expandia as funções exercidas até então. Deste modo, entre 2008 e 2009, teve lugar no Kosovo o processo de estabelecimento da FSK. Novamente, veteranos da campanha da independência em 1999, grande parte destes ex-membros do ELK, foram absorvidos na nova força, que também passou a operar sob supervisão da OTAN.
A importância do processo de construção e transformação destas instituições reside no fato de que a lei aprovada em dezembro de 2018 se trata, na verdade, da expansão das competências da Força de Segurança do Kosovo. O parlamento do Kosovo aprovou três projetos de lei sobre a Força, criando uma base legal para sua transformação em um exército regular. Segundo a decisão, a principal alteração com relação às atividades que a força tem exercido até então é defesa do território.
No cerne dos debates sobre a transformação da FSK em um exército regular está o argumento, daqueles que são contrários à medida, de que esta força ainda representa o Exército de Libertação Kosovar, que teve papel central durante o conflito em 1999. Este argumento reflete a importância que teve o processo de reincorporação dos membros do ELK em novas forças de segurança. Pode-se dizer que teve lugar no Kosovo um processo similar ao que se observa em outros cenários pós-conflito: ao mesmo tempo em que membros das forças paramilitares que participaram no conflito foram absorvidos em novas estruturas de segurança, a elite de alguns destes grupos passou às estruturas chaves do governo. No caso do Kosovo, entre os acordos negociados no pós-conflito entre o ELK e a OTAN, previa-se que o próprio grupo deveria indicar membros para participar nas novas estruturas de administração e na formulação de políticas. É o caso, dentre outros, do atual presidente kosovar, Hashim Thaci, que exerceu a função de Diretor Político do ELK durante a Guerra do Kosovo. Além de Thaci, o ex-primeiro ministro kosovar Ramush Haradinaj também fez parte do grupo.
Do ponto de vista jurídico, o principal argumento levantado pelo governo sérvio contra a criação da nova força kosovar é que, além de violar as disposições da resolução 1244 da ONU, ao adotar leis sobre a mudança dos poderes da FSK, o parlamento do Kosovo também não cumpriu com a obrigação de alcançar “dupla maioria” em votação. Isto é, dois terços de todos os 120 membros parlamentares e dois terços dos 20 parlamentares não-albaneses étnicos, conforme a Constituição de 2008.
Por outro lado, entre aqueles que têm se posicionado favoravelmente ao estabelecimento do exército kosovar, a FSK não é nem o ELK nem um grupo armado de albaneses do Kosovo. A FSK seria uma força distinta e multiétnica estabelecida após a independência do Kosovo em 2008.
Constrangimentos internacionais recentes
Considerando as articulações entre os atores internacionais, há uma série de constrangimentos à movimentação, especialmente com relação ao posicionamento dos principais aliados do governo kosovar.
Em 28 de setembro de 2018, o secretário de defesa dos Estados Unidos, James Mattis, confirmou forte apoio dos Estados Unidos à transformação da FSK em um exército regular. De maneira semelhante, em outubro do mesmo ano, a OTAN também declarou apoio à medida, desde que o processo fosse realizado através de consultas com a Organização. Contudo, com o aumento das movimentações em Pristina, em 4 de dezembro de 2018, o presidente sérvio Aleksandar Vucic se reuniu com os embaixadores da Rússia e da China em Belgrado para solicitar apoio nas disputas. Em 5 de dezembro, apenas um dia depois deste encontro, o secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg, advertiu que o esforço do governo em Pristina para criar um exército era inoportuno, que contrariava os conselhos de muitos aliados da OTAN e, por fim, que poderia trazer repercussões para os projetos de integração euro-atlântica do Kosovo.
Quando em 6 de dezembro o Primeiro Ministro kosovar, Ramush Haradinaj, telefonou ao Secretário Geral da OTAN para comunicar o comprometimento do governo com a mudança nos próximos meses, Jens Stoltenberg pediu ao Primeiro Ministro para não prosseguir com as medidas. Em 2017, quando o presidente kosovar, Hashim Thaci, tentou um movimento semelhante, OTAN e Estados Unidos se opuseram à proposta. No passado, os deputados sérvios do Kosovo, que detém 10 dos 20 assentos no parlamento reservados para comunidades não-albanesas, também bloquearam todas essas iniciativas.
Cabe dizer que o anúncio da votação ocorreu em um momento de aumento nas tensões na região. Também em 2018, no mês de novembro, o governo kosovar introduziu uma tarifa de 100% sobre as importações provenientes da Sérvia, como retaliação aos esforços do governo em Belgrado para impedir que o Kosovo se juntasse a organizações internacionais. Imediatamente após a votação, o presidente sérvio Aleksander Vucic lançou um pedido de reunião do Conselho de Segurança da ONU sobre o tema, culpando países ocidentais por ajudar os albaneses do Kosovo a estabelecer um exército. "Hoje ficou claro que os EUA o Reino Unido, e a Alemanha, quando se trata do Exército do Kosovo, estão atrás dos albaneses do Kosovo", disse Vucic a jornalistas. "A Sérvia não está surpresa", acrescentou ele. O governo russo, por sua vez, forte aliado da Sérvia, descreveu estas ações como "desestabilizadoras”, além de uma violação das resoluções do Conselho de Segurança da ONU.
Após o anúncio da permanência das tarifas sobre os importados e a votação realizada em 14 de dezembro, a premiê da Sérvia, Ana Brnabi?, reconheceu publicamente a possibilidade de uma nova intervenção militar no Kosovo. Contudo, a declaração pode ser entendida não apenas como uma resposta às exigências de uma parcela da população sérvia, mas também como um instrumento de pressão ao governo em Pristina. Isto porque, dentre outros elementos, um novo conflito militar na região limitaria os projetos de adesão da Sérvia à União Europeia.
Além disso, a falta de recursos financeiros e a alta dependência externa do Kosovo é um elemento central a se considerar pois tendo em vista que não está clara a posição dos principais aliados do governo em Pristina com relação ao apoio a tal movimentação, quem seriam os financiadores do exército?
Quando da criação da FSK, uma determinação que acompanhou esta mudança foi a instituição do Ministério da Força de Segurança do Kosovo. Isto é, muitos analistas entendem que a partir desse momento, apesar da constante liderança da OTAN, a FSK já possuía relativa autonomia. Ainda assim, a existência de um exército nacional nos moldes que se propõe poderia representar um outro passo no esforço de reconhecimento do Kosovo enquanto Estado independente? De qualquer forma, não se pode negar que a movimentação impacta diretamente os projetos do governo e das organizações internacionais, principalmente União Europeia e a própria OTAN.