Seguindo os passos do detetive Auguste Dupin no romance de Edgar Alan Poe, Os assassinatos da rua Morgue, terminei a primeira parte desse thriller acadêmico, “Drogas e capitalismo em Toronto: as mortes da Rua Queen”, publicado há duas semanas. Nele, fiz uma conclusão parcial a respeito do questionamento sobre como e por que o Canadá estava enfrentando uma crise nacional de abuso de opioides. O “como” dessa crise se desvelou a partir da conexão entre as mortes ocorridas na rua Queen, em Toronto, e uma indústria de produção de fentanil localizada a mais de 12 mil quilômetros dali, em algum lugar da cidade de Guangzhou ou a ela similar, na China. Faltava, no entanto, o x do enigma: o porquê. Por que os canadenses estavam utilizando opioides em tão alta quantidade? Por que estavam consumindo exatamente essa substância entre tantas outras possibilidades disponíveis no mercado ilícito?
No início das minhas pesquisas encontrei uma revista online chamada Toronto Life que discute a vida cultural, política e social da cidade. A revista dedica uma coluna ao tema das drogas, trazendo relatos pessoais de ex-usuários problemáticos de drogas, que contavam a sua história, seu sofrimento e redenção. Lá encontrei um caso paradigmático que me deu uma chave explicativa para o “porquê” que eu procurava, abrindo outro contexto de interpretação sobre o abuso de opioides no Canadá. Darryl Gebien, um médico de carreira promissora, atualmente cumpre dois anos de prisão em uma penitenciária federal por tráfico e falsificação de prescrições de fentanil e similares para si mesmo e para outros. A longa e detalhada história narrada por ele na Toronto Life faz uma reconstrução do próprio uso problemático de fentanil, intercalando explicações de diferentes matizes, médica, individual e familiar.Darryl Gebien
O mais surpreendente do relato é o ambiente e as dinâmicas lícitas nas quais Darryl desenvolve o abuso de opioides. Ainda criança, para aliviar as dores resultantes de uma cirurgia para a correção de uma hérnia de hiato, os médicos lhe administraram doses de morfina. Já adulto, para suportar crises de dores nas costas, sua mãe lhe deu seu medicamento à base de opioides, chamado Dilaulid (anos depois ela viria a morrer ao administrar erroneamente doses de fentanil para suas próprias dores nas costas). Novamente, após uma contusão no polegar em um jogo de hockey, Darryl teve receitado oxicodona pelo seu médico, também um opioide. Depois disso, sempre que ia a médicos alegando dores, solicitava prescrição de remédios à base de opioides, que nunca lhe foram negados. Em uma nova fase, por uma série de fatores pessoais, psicológicos e profissionais, Darryl passou a ter um uso problemático da substância (fumava fentanil de 6 a 15 vezes ao dia em sua casa) e, para manter esse uso, passou a falsificar receitas com a assinatura de outros médicos, colegas de trabalho, até ser descoberto. Perdeu sua licença para exercer a profissão medica, ficou apartado dos dois filhos pequenos e foi internado algumas vezes em clínicas particulares e públicas, até que acabou preso pelas falsificações e pelo tráfico de fentanil obtido em farmácias.Emplastro de fentanil
Toda essa derrocada do médico promissor ocorreu em um bairro de classe alta, primeiro de Toronto, depois nas suas cercanias, em Barrie. O circuito de envolvimento, abuso e obtenção da droga ocorreu em hospitais e farmácias, ambientes de possibilitam obtenção e uso de diferentes tipos de drogas, mas usualmente de maneira lícita. Tendo em conta esse contexto, uma fala de Darryl, como médico, pareceu particularmente significativa:“Os médicos são parte do problema. Uma das queixas mais comuns que recebemos de pacientes é que não damos o devido tratamento à dor crônica. E, como a dor é subjetiva e difícil de diagnosticar, tendemos a aceitar a palavra dos pacientes quando dizem que estão com dor. No final do ano passado, o College of Physicians and Surgeons anunciou que estava investigando 86 médicos por prescreverem doses diárias de opioides que ultrapassavam as diretrizes nacionais.”
Ao buscar alguma referência a respeito do papel dos médicos no uso de opioides, logo apareceram diversas menções ao altíssimo número de prescrições a esse tipo de fármaco. Somente no biênio 2015/2016 foram preenchidas mais de 9 milhões delas para cerca de 14% da população da província de Ontário, uma em cada sete pessoas. No Canadá, as farmácias receberam mais de 19 milhões de prescrições para opioides em 2016. De acordo com o departamento de justiça do Canadá, a obtenção de opioides entre aqueles que têm um uso abusivo se dá da seguinte forma: 27% usam suas próprias prescrições, 32% obtém de amigos, 11% obtém de familiares, 19% obtêm na rua e 11% obtêm por prescrições de mais de um médico. Isso significa que a imensa maioria das pessoas que faz uso abusivo da substância a acessa dentro de um circuito que envolve médicos, parentes e amigos, sempre com alguma prescrição médica. Esse contexto definiu que um dos porquês do enigma circundava um “lugar” improvável na discussão e operacionalização da chamada “guerra às drogas” nas sociedades contemporâneas: a indústria farmacêutica. Esse “lugar” da investigação é, na verdade, um ator político que remete inevitavelmente ao incômodo vizinho canadense, os Estados Unidos. Esse vizinho à fronteira sul é o berço de uma das indústrias farmacêuticas de opioides mais lucrativas e relevantes do mundo, cujo mercado interno foi estimado em US$ 11 bilhões em 2014 e com previsão de alcançar 17.7 bilhões em 2021. De maneira correspondente, poderíamos dizer, são estimados 2 milhões de americanos dependentes de opioide, além de milhares de mortes por overdose. Em 2014, foram 29 mil mortes – 61% de todas as mortes por overdose nos Estados Unidos. Os números de 2016, ainda não divulgados oficialmente, se seguirem a mesma proporção, representarão quase 37 mil mortes por opioides das aproximadamente 60 mil mortes por overdose que o país contabilizou. Dentro desse grande e complexo universo da indústria farmacêutica, uma empresa chama a atenção pela sua contribuição à área da pesquisa com fármacos opioides semissintéticos, a Purdue Pharma.
Purdue Pharma, Stamford, CT, EUA
No momento em que me deparei com a Purdue Pharma ficou claro que era chegada a hora de fazer mais um movimento de escala na análise. Teria que sair do contexto mais amplo e observar com lupa os detalhes dessa empresa, o que eu acreditava poder ser tão ou mais revelador do que o destino de Darryl Gebien. O terreno que se descortinava à frente era movediço, no qual lícito e ilícito, público e privado e local e global se misturavam em formas pouco exploradas nas discussões sobre drogas, segurança e relações internacionais. No entanto, como o caminho do conhecimento é sem volta, segui em frente. Continua .... -- * Professor do departamento de relações internacionais da PUC-SP pesquisador do Observatório de Relações Internacionais (ORI) da PUCSP e pesquisador visitante do departamento de criminologia da Universidade de Ottawa, Canadá