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Um thriller acadêmico: das overdoses por opioides em Toronto à produção ilícita em Guangzhou
Por Paulo Pereira*
No preâmbulo de “Os Crimes da Rua Morgue”, um precursor da literatura policial mundial, o narrador anônimo de Edgar Allan Poe afirma que resolver um enigma demanda saber “o que deve ser observado”. Por vezes, o contexto é mais importante do que o objeto imediato do enigma.
Com esse ‘estado de espírito’ li o relato das quatro mortes ocorridas em julho desse ano na Rua Queen e suas proximidades, na parte antiga da cidade de Toronto. Todas elas, atestou a polícia de Toronto, eram resultados de overdoses provocadas por opioides sintéticos, possivelmente fentanil, ou similares semissintéticos, em alguns casos misturados a outras drogas, como heroína. Os casos geraram grande comoção na cidade e o próprio prefeito John Tory se pronunciou a respeito, qualificando-os como “tragédias” que tiveram “impactos devastadores na comunidade como um todo”, os mesmos termos utilizados pelo primeiro ministro Justin Trudeau no início do ano para falar sobre casos semelhantes ocorridos na costa Oeste do país.
Tal repercussão se explica pelo contexto mais amplo de overdoses por opioides que o Canadá tem vivenciado recentemente. Segundo o relatório nacional divulgado pelo governo canadense em maio, foram registradas ao menos duas mil e quinhentas mortes por overdose de opioides no país em 2016. Na província da Colúmbia Britânica, onde fica Vancouver, o rápido aumento dessas mortes chama atenção (2014:266; 2015:510; 2016:914; 2017 - 6 meses:780). O problema, no entanto, é certamente ainda maior, uma vez que o governo federal não teve acesso aos dados da província de Quebec e outras províncias apresentaram dados defasados ou parciais. Os dados da província de Ontário, por exemplo, à qual pertence a cidade de Toronto, se referem aos seis primeiros meses de 2016 indicam 412 mortes. Tais informações, no todo, sugerem que a overdose por opioides é um problema nacional e com uma preocupante projeção de curto prazo.
Fentanil em pílulas
A percepção que se tem do Canadá está distante desse cenário. Por ser um país razoavelmente liberal com o uso das drogas ilícitas e muito progressista em relação às políticas públicas de redução de danos, que remontam aos anos 1980, imagina-se que o uso e o abuso de drogas estejam sob controle. Reforçam essa percepção tanto a existência das salas de uso assistido de drogas injetáveis em algumas províncias (as Insites), quanto a baixa taxa de encarceramento por problemas relacionados a drogas e a regulação nacional da maconha prevista para julho de 2018. Os opioides sintéticos, no entanto, parecem estar fora desta curva normal. Por isso, enquanto eu lia diversas narrativas a respeito das mortes da rua Queen, uma pergunta rodeava a minha mente: como e por que isso está ocorrendo no Canadá? Não tardou para eu encontrar uma possível explicação governamental, ressoada pelos principais veículos de comunicação do país: a "culpa" era da China. De acordo com a Royal Canadian Mounted Police, equivalente à Polícia Federal brasileira, o fentanil e similares estariam sendo produzidos em laboratórios clandestinos em grandes cidades da China, tal como em Cantão (Guangzhou), e exportados para o Canadá. De fato, esse fluxo é característico da circulação de diferentes tipos de drogas por todo mundo e conecta mercados de produção, distribuição e consumo que se retroalimentam, funcionando como uma cadeia bem integrada e especializada. Dela participam invariavelmente atores privados, no mais das vezes envolvidos também em dinâmicas lícitas, bem como atores governamentais, principalmente de agências de aplicação da Lei, mas também de outras esferas nos diversos países pelos quais as drogas ilícitas circulam. Esse mercado internacional do fentanil estaria sendo operacionalizado por transações ilícitas eletrônicas realizadas principalmente por sites como o EC21.com, um mercado de internet on-line que conecta licitamente milhões de fornecedores e compradores em todo o mundo. Como o fentanil é utilizado em ínfimas quantidades por conta da sua potência anestésica (50 a 100 vezes maior que a potência da morfina, de acordo com o Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime), seria fácil escondê-la em cargas transportadas pelos portos e aeroportos, mas, principalmente, em pacotes enviados pelo correio. A estrutura postal internacional seria, portanto, um suporte decisivo desse comércio ilícito. Após chegar ao Canadá, o fentanil seria misturado a outras drogas em laboratórios clandestinos, principalmente nas províncias da Columbia Britânica e Alberta, para ser vendido pelo país, nas ruas, perto de abrigos para sem teto, em shows de música eletrônica, em bairros ricos e pobres, caracteristicamente nas cidades mais populosas.Apreensões de fentanil advindo da China desde abril de 2016 (Vice News)
O mercado ilícito canadense construído em torno do fentanil parece ser extremamente lucrativo. Estimativas mostram que um quilo do opioide sintético puro com todos os demais substâncias e equipamentos necessários para a produção comercial, a um custo de CAD $100 mil, podem render alguns milhões com a venda de varejo. Ao que tudo indica, essa indústria de transformação é o que impulsiona essa dinâmica capitalista “do B”. Aí estava a resposta à primeira parte da minha pergunta, “o como” o fentanil circulava pelo Canadá. Faltava ainda “o porquê” e esse é sempre um importante x do enigma. Os chineses não estavam obrigando os canadenses a utilizarem fentanil ou seus derivados, isso era certo. Então, por que os canadenses a estavam utilizando em tão alta quantidade? Por que estavam consumindo exatamente essa substância entre tantas outras possibilidades disponíveis no mercado ilícito? Como estou longe de ser qualquer coisa próxima ao detetive Auguste Dupin, que vai desvendar o mistério do romance de Poe, não tinha nenhuma hipótese até então. Por isso, voltei às leituras a respeito de casos de abuso de fentanil, buscando identificar o contexto mais amplo que me levaria ao entendimento da crise dos opioides no Canadá. Continua .... PS: Até 01/2018 estou vinculado ao departamento de criminologia da Universidade de Ottawa, Canadá, como pesquisador visitante. Durante esse período publicarei textos no blog Terra em Transe relacionados à pesquisa em andamento sobre a dimensão internacional do controle das drogas ilícitas no espaço urbano de Toronto. -- * Professor do departamento de relações internacionais da PUC-SP, pesquisador do Observatório de Relações Internacionais da PUCSP e pesquisador visitante do departamento de criminologia da Universidade de Ottawa, Canadá