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Nas celebrações pelo “Dia da Vitória” sobre o nazismo, o governo Putin busca construir a narrativa de uma Rússia que deixou para trás o caos e a decadência dos anos 1990, tornando-se uma potência capaz de se fazer respeitar mundialmente. Entretanto, os desafios domésticos e internacionais impostos ao Kremlin questionam o discurso triunfante.
Por Denis Matoszko
Neste nove de maio os russos celebraram mais um aniversário, o de 72 anos, da vitória sobre a Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial. Conhecida como “Dia da Vitória”, a data é comemorada com festividades por toda Rússia. Tal celebração não constitui em si mesma um fato inédito para os russos, uma vez que advém desde os tempos da URSS, ocorrendo também em outras ex-repúblicas soviéticas. Contudo, a partir da ascensão de Putin, esta data foi transformada no principal feriado cívico do país. Para isso o governo passou a investir em grandiosos eventos artísticos e culturais, concertos, desfiles militares e queima de fogos nas principais cidades, tudo sob ampla cobertura midiática.
Uma das razões por trás da renovada valorização desta data reside no senso de oportunidade do Kremlin em se apropriar politicamente de um evento muito sensível para a maioria dos russos. Mesmo tendo ocorrido a mais de setenta anos, a escala da guerra de extermínio no território soviético – que devastou a parte mais desenvolvida deste e levou à morte de mais de vinte e cinco milhões de seus habitantes – afetou praticamente todas as famílias de alguma forma, sensibilizando ainda hoje a população. Tendo perdido seus dois principais feriados com o desaparecimento do Estado soviético (o Primeiro de Maio e o dia da Revolução de Outubro) e diante da necessidade de criar símbolos nacionais para a “nova” Rússia, o governo Putin apostou boa parte de suas fichas patrióticas no nove de maio, cooptando manifestações populares surgidas anteriormente.
O ponto alto das atividades patrocinadas pelo governo concentra-se na parada militar de Moscou, na Praça Vermelha, por onde marcham dezenas de milhares de soldados seguidos por colunas de veículos militares que vão desde blindados de combate até os enormes mísseis intercontinentais das “forças estratégicas” (nucleares). Enquanto no período soviético os desfiles nesta data ficaram reservados a apenas alguns jubileus (vinte, quarenta e quarenta e cinco anos do fim da guerra) na Rússia de Putin estes se tornaram uma tradição anual. Além de compor uma vitrine para os novos produtos da crescente indústria bélica russa, os discursos proferidos por Putin nestas ocasiões também carregam uma dose de simbolismo: assim como a URSS reergueu-se das ruínas da guerra, também a Rússia de hoje deixou para trás o caos e a decadência dos anos 1990, tornando-se uma potência capaz de se fazer respeitar mundialmente.
O governo russo, deste modo, instrumentaliza as comemorações do “Dia da Vitória” como palanque para construir a narrativa de uma Rússia que vem reconquistando seu papel no mundo como grande potência. Em 2014, Putin fez questão de comparecer não somente ao desfile em Moscou como também ao realizado na cidade de Sevastopol, cidade portuária da Crimeia, menos de dois meses após este território ter sido “reunificado” à Rússia. No ano seguinte, no grande desfile dos 70 anos da vitória, Putin assistiu ao lado do líder chinês Xi Jinping tropas chinesas marcharem pela primeira vez junto aos russos na Praça Vermelha. Em meio às continuadas tensões com Washington, a exibição da parceria com o gigante asiático servia para mostrar que a Rússia não estava isolada no cenário internacional.
No espetáculo deste ano, entretanto, as condições não estavam tão favoráveis para a manifestação ufanista desejada pelo Kremlin. As manhãs ensolaradas dos anos anteriores deram lugar a um tempo chuvoso que impediu, pela primeira vez, o imponente desfile da aviação, o qual tradicionalmente encerra a parada militar. O clima, entretanto, foi uma mera inconveniência perto dos demais problemas que contestam a narrativa triunfalista da liderança russa. A euforia nacionalista obtida anteriormente com a anexação da Crimeia parece agora uma pálida lembrança diante da difícil situação em que se encontra a economia russa, agravada pelas sanções impostas pelos Estados Unidos e pela União Europeia. Ainda mais preocupante para o governo foi verificar a renovada disposição dos russos em manifestar publicamente sua insatisfação, o que aconteceu no dia 26 de março, quando milhares de pessoas tomaram as ruas em mais de 90 cidades do país para protestar contra o governo. Inéditos desde 2012, tais protestos chamaram a atenção pela participação da juventude que desafiou abertamente o aparato repressivo do governo, o qual proíbe manifestações não autorizadas e ameaça os possíveis transgressores a passar anos na cadeia.
Na Síria, atualmente o principal palco da atuação internacional russa, os acontecimentos recentes também contrariam a narrativa vitoriosa transmitida por Moscou. Tendo auxiliado o governo de Bashar al-Assad a recuperar terreno, a liderança russa havia sinalizado a intenção de encerrar o grosso de sua intervenção militar, apoiando uma “solução” política para o conflito, desde que essa assegurasse um papel proeminente para os russos no futuro daquele país. Contudo o ataque químico promovido pelo governo sírio em Idlib, no começo de abril, representou um duro golpe às aspirações diplomáticas russas: além de prejudicar o frágil cessar-fogo capitaneado por Rússia e Turquia, colocou em xeque a competência (ou a honestidade) do governo russo, uma vez que este havia sido o fiador do acordo que garantia a destruição do arsenal químico de Assad. Somou-se a estes fatos o revés sofrido pela liderança russa com o bombardeio ordenado pelo presidente Trump contra uma base aérea síria, três dias após o ataque químico.
Dado este cenário, no início de maio o governo russo apoiou um novo plano para o cessar-fogo na Síria, o qual propõe a criação de “zonas-seguras” no país. Nestas localidades não poderia haver continuação das hostilidades entre as partes, o que provavelmente significaria que estas zonas ficariam sob uma área de exclusão aérea. Além disso, a liderança russa também mostrou interesse em uma participação efetiva dos Estados Unidos neste plano, embora os detalhes deste ou de como funcionariam tais zonas ainda não estejam esclarecidos. A busca de apoio para uma saída negociada na Síria também se refletiu no discurso de Putin para o nove de maio: o mandatário russo associou terrorismo e nazismo, reforçando a necessidade da cooperação internacional para derrotá-los. É provável, portanto, que os próximos acontecimentos na Síria desempenhem um papel relevante para legitimar ou prejudicar a imagem construída pelo Kremlin de uma Rússia ascendente e “vitoriosa”.