Por Priscila Villela e Elcinéia Castro
Nesta última segunda-feira 20, a CNN publicou uma matéria indicando que “o comércio global de armas alcança seu maior nível desde o final da Guerra Fria”, a partir de um relatório produzido pela Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI). Segundo a pesquisa, o comércio internacional de armas tem sido impulsionado, sobretudo, pelas vendas ao Oriente Médio pelos Estados Unidos. Os Estados Unidos ocupam uma fatia da ordem de 33%, sendo 47% apenas ao Oriente Médio. Os principais compradores são Arábia Saudita, Emirados Árabes e Turquia. Não por um acaso, países de maioria muçulmana que não foram incluídos na lista de países banidos de Trump.
No governo Obama, os Estados Unidos venderam à Arábia Saudita mais de US$ 115 bilhões em armas. O fato ganhou notoriedade no ano passado dadas as altas taxas de mortes a civis na Guerra do Iêmen, onde uma coalisão liderada pela Arábia Saudita luta contra rebeldes aliados do Irã. Interessante notar que, apesar do choque dos duros discursos de Trump, a retórica bem-humorada e conciliadora de Obama não expressava uma ação menos bélica do governo.
Apesar de receber pouca visibilidade, o conflito no Iêmen vem gerando uma das crises humanitárias mais severas do mundo já há cerca de dois anos. Segundo reportagem publicada no G1, a tensão no país iniciou-se após a chamada “Primavera Árabe” em 2011, quando grupos rebeldes houthis, respaldados pelo Irã, passaram a reivindicar participação no poder. Em 2014 conquistaram a capital, Sanaa, forçando o então presidente a fugir do Iêmen à Arabia Saudita em 2015. Desde então, a Arábia Saudita passou a liderar uma coalizão, com o apoio dos Estados Unidos, para impedir o avanço Houthis.
O mercado de armas norte-americano mostra uma lógica de ganha-ganha. Segundo pesquisa divulgada pela CNN em 2016, embora muitos importadores de armas norte-americanos usem seus próprios recursos em tais compras, os Estados Unidos também fornecem empréstimos e ajuda financeira para que outros países comprem armas norte-americanas. Esse é o caso de Israel, Emirados Árabes, Turquia, Coréia do Sul, Austrália, Taiwan, Índia, Singapura, Iraque, Egito e Colômbia. O orçamento de 2017 para este fim atinge a ordem de US$ 5,7 bilhões. Das maiores companhias produtoras de armas, do mundo, muitas são norte-americanas, como a Lockheed Martin, Boeing, Northrop Grumman, Raytheon e BAE Systems Inc., dentre outras, segundo relatório produzido pela The Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI).
Exportação de Armas Brasileiras
Os recentes conflitos na Líbia, Israel-Palestina, Síria, Iêmen, Iraque e Afeganistão costumam ser retratados pela mídia brasileira como “conflitos entre seitas religiosas”, “divergências entre sunitas e xiitas”, “terrorista jihadista” com pouca ênfase no financiamento que as grandes potências destinam à violência, a todo o mundo, e em especial a esta região do Oriente Médio.
O Brasil não escapa dessa lógica perversa. O Brasil, segundo pesquisas da Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI) também ocupa um papel relevante no comércio internacional de armas, com um aumento de 24,7% na produção em 2014. O país, conhecido pela diplomacia pacífica, entre 2013 e 2016 aumentou em sete vezes a exportação de armas leves à Arábia Saudita. No ano de 2015, o valor total de armas exportadas para Arábia de Saudita foi de US$ 109.559.247,00 — a maior parte deste valor corresponde ao que a empresa Avibrás Indústria Aeroespacial S/A vendeu. O portfólio desta empresa inclui produtos de artilharia, sistema de defesa aérea, mísseis e veículos blindados. Aliás, durante o recente conflito no Iêmen, o governo brasileiro assumiu um discurso mediador, pedindo que as facções deixassem as armas de lado e partissem para o diálogo para chegar a um consenso sobre as questões em xeque. Seguindo essa linha pacifista, nos últimos dois anos o Brasil assinou vários acordos com o Iêmen para a promoção de segurança alimentar, desenvolvimento agrícola e programas escolares.
Segundo relatório da ONU, a fabricante brasileira de armas Forjas Taurus enviou ao conflito do Iêmen um carregamento de 8 mil armas por meio de um filho do iemenita Fares Mohammed Mana'a, listado como um dos maiores traficantes internacionais de armas, três meses após a organização colocar o Iêmen sob embargo. [caption id="attachment_912" align="alignright" width="343"] Desenvolvido pela aPública[/caption]
No entanto, existem algumas questões que precisam ser consideradas neste cenário. Uma das facções envolvidas no conflito é liderada pela Arábia Saudita e apoiada pelos Estados Unidos. E apesar do discurso da diplomacia brasileira, foram encontradas diversas armas de fragmentações produzidas pela Avibrás Indústria Aeroespacial S/A. Esse tipo de munição, os foguetes SS-60 e SS-80, também conhecidos como bombas cluster ou ainda, munição de dispersão, representam uma ameaça aos civis não envolvidos no conflito, pois estas armas deveriam se “autodestruir”, assim que entrassem em contato com o solo, o que nem sempre ocorre, vitimando todos que estiverem próximos ao local. Existe inclusive uma convenção específica que proíbe armas de fragmentação, mas Brasil, Estados Unidos e Arábia Saudita ainda não ratificaram. Contudo, é importante lembrar que o Brasil não ratificou o tratado por uma questão de defesa e soberania. Isso porque, o governo brasileiro alega que o acordo é discriminatório, já que para um tipo específico de munição de dispersão, que somente países desenvolvidos desenvolvem, foi autorizada a produção. Além disso, as Forças Armadas brasileiras entendem que esse tipo de munição de dispersão é fundamental para fortalecer a estratégia de dissuasão e impedir ações contra o território brasileiro, principalmente para defender a Amazônia.
Vale lembrar que a Arábia Saudita consiste em um regime autoritário, no qual todos os poderes estão concentrados sob a figura do rei Salman bin Abdul-Aziz al-Saud. Em termos geográficos, o Estado saudita ocupa a maior parte da área desértica e conserva seu nome, desde os anos de 1930, como território da família Saud. Ao contrário dos países vizinhos, a Arábia Saudita nunca foi colonizada por uma potência ocidental. É preciso considerar a transição de poder no Oriente Médio, que passou do império britânico para o norte-americano durante a formação do Estado saudita. Primeiramente o império britânico e agora o norte-americano construíram uma relação especial com a Arábia Saudita, mesmo destoando do discurso imperialista de democratização na região. Em função da manutenção de seus interesses domésticos materiais, especialmente a dependência energética e os interesses geoestratégicos na região, as grandes potências globais, Grã-Bretanha até a segunda guerra mundial e atualmente os Estados Unidos têm mantido estreitas relações com a Arábia Saudita.
Apesar de o regime político saudita ser totalmente contrário ao discurso democrático do Brasil e dos Estados Unidos, a violação aos direitos humanos praticada pelos monarcas em âmbito local e regional tem sido tolerada por ambos, como tem ocorrido na última guerra empreendida pelos sauditas no Iêmen, em nome de seus interesses econômicos.
O caso de Estados Unidos e Brasil e suas relações com os países em conflito no Oriente Médio, com especial atenção para a Arábia Saudita, demonstram que a política externa e o discurso político dos Estados não são impactados pelo regime político em vigor dos países em questão, quando se trata da estabilidade econômica, financeira e da lucratividade de suas corporações. Apesar do Brasil e dos Estados Unidos se apresentarem como grandes defensores dos direitos humanos, imbuídos da missão de promover a paz no mundo, existem grandes lacunas entre os discursos adotados pelos dois Estados e as práticas, movidas pelos interesses econômicos e os altos lucros com a “exportação da violência” que regem essas relações internacionais na região.