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Decisão de Trump legaliza décadas de colonização judaica de Jerusalém Oriental e altera a forma pela qual israelenses e americanos irão abordar as negociações de paz daqui em diante
Por Arturo Hartmann e Bruno Huberman
O presidente dos EUA anunciou, nesta quarta-feira (6), a decisão de reconhecer Jerusalém como a capital de Israel. No anúncio, ele foi fiel ao seu modo de distorcer a verdade, de enxergar um mundo como apenas ele enxerga. A justificativa para ele reconhecer Jerusalém, como a capital de Israel, foi criar uma nova abordagem para o processo de paz.
A decisão sobre Jerusalém pode ter sido o preâmbulo para um plano de paz que está sendo desenhado a ser apresentado no início de 2018. Diantes dos recentes eventos, são altas as chances de a administração Trump ficar marcada por escamotear a colonização israelense dos territórios palestinos como seu novo truque dentro do processo de paz.
O louco, a razão e a paz
A grande maioria dos artigos que tentam compreender o significado do reconhecimento dos EUA de Jerusalém como a capital oficial de Israel trazem, na prática, pouco material para a reflexão e reforçam discursos que de alguma forma buscam enquadrar Trump como um ator irracional. O colunista da Folha de S. Paulo Clóvis Rossi disse que Trump estaria incendiando o conflito entre israelenses e palestinos sem nenhuma razão aparente. Outras explicações se voltam para o lobby israelense como fator decisivo na política externa do EUA.
Em Israel, essa é uma reivindicação bastante antiga, que data do período em que os israelenses anexaram a parcela oriental de Jerusalém após a sua conquista na Guerra dos Seis Dias, em 1967. Quando Israel definiu a expansão dos limites da cidade sob seu controle, incluindo a quase totalidade da região do que seria Jerusalém Oriental. A partir de então, instituiu políticas de zoneamento, para poder controlar as ações dos palestinos em temas de construção, levando adiante uma política de demolição de casas.
Com a construção do Muro, em 2002, Israel passou a traçar os limites de quem poderia permanecer como um “jerusalemita” e quem perderia tal status. Isso servia também para mudar a demografia da cidade, ou seja, diminuir os não-judeus que habitavam a cidade. Alguns dos vilarejos que ficaram “do outro lado” do Muro seriam desapropriados do pertencimento a Jerusalém para adicionar-se às políticas que Israel montou para controlar a Cisjordânia. Hoje, a população da Jerusalém ocupada é de cerca de 860 mil pessoas. Destas, cerca de 300 mil são palestinos sem qualquer cidadania.
Nos últimos anos, quem mais fazia coro em torno da declaração de Jerusalém como capital do Estado judeu eram os políticos de direita israelense, como o premiê Netanyahu e os ministros Naftali Bennet e Avigdor Liberman. A esquerda sionista via os custos do reconhecimento como maiores do que os eventuais bônus.
Nos EUA, grupos judeus e evangélicos sionistas vem já há um tempo pressionando parlamentares e presidentes americanos para tomar decisões que convirjam com os interesses israelenses há décadas. Os 22 anos em que presidentes americanos tem postergado, a cada seis meses, a decisão final de mover a embaixada dos EUA para Jerusalém após aprovação no Congresso é uma demonstração da competição entre os diversos setores da sociedade americana.
Com a eleição de Trump, grupos mais conservadores ganharam espaço, representados por figuras como o empresário judeu sionista Sheldon Adelson, o maior doador de Trump na disputa eleitoral, e o embaixador dos EUA em Israel, Milton Friedman.
As implicações imediatas da decisão de Trump em Jerusalém e na região
A decisão de Trump não tem peso legal imediato, mas tem uma importante relevância política. Por um lado, a maior potência do mundo corrobora a visão de um dos lados sobre um dos temas mais delicados da questão palestina. Em segundo, o “mediador neutro” teria posto uma pá de cal na solução de dois Estados ao definir um dos termos do processo longe das mesas de negociação, em uma canetada.
O paradigma criado pelos EUA estaria sendo dinamitado por eles próprios. Trump estaria dilapidando os históricos esforços de seus antecessores: de Bush pai, responsável por pressionar os israelenses a sentarem na mesa de negociações pela primeira vez, à dobradinha Obama-Kerry, que fracassou sem evoluir significativamente.
Segundo o Trump, ele estaria compensando anos de covardia de presidentes dos EUA com essa decisão. Hoje, eu estou entregando o que muitos presidentes prometeram.
A decisão de Trump é um atropelamento da lei internacional, uma vez que a soberania de Israel sobre Jerusalém é ilegal do ponto de vista do arcabouço jurídico internacional. Já que Jerusalém faz parte dos Territórios Palestinos Ocupados em 1967 — o que faz de qualquer construção israelense lá um assentamento ilegal.
Embora Trump tenha se tornado famoso por tuítes e declarações apressadas e bombásticas, e a sua decisão sobre Jerusalém possa parecer incompreensível, num primeiro momento, a sua movimentação em torno da questão Palestina-Israel não é a de um louco. Muito pelo contrário, a sua abordagem permanece dentro da tradição do processo de paz e inclui uma percepção acurada sobre a realidade e seus fatos concretos.
“É apenas o reconhecimento da realidade”, declarou. De fato, se há algo que a ocupação de Israel constituiu e que o processo de paz institucionalizou foi a legitimações de contravenções e crimes que já eram uma realidade. Agora, os EUA repetem o script ao conceder um aval legítimo a algo que sustentavam materialmente.
Diálogos de paz como legitimação da colonização
No decorrer das negociações de paz, um dos maiores esforços dos israelenses tem sido alterar o patamar aceito pelos palestinos e garantir a soberania sobre os milhares de assentamentos judeus que foram construídos ilegalmente durante a ocupação dos territórios palestinos, como os doze bairros judeus erguidos em Jerusalém Oriental com a anuência dos presidentes americanos há décadas.
Em 2005, quando o premiê israelense Ariel Sharon retirou os assentamentos judeus da Faixa de Gaza, em uma movimentação que buscava unilateralmente trazer uma solução provisória para o impasse, fez questão de receber do então presidente dos EUA, George Bush filho, cartas que confirmassem que as colônias judaicas na Cisjordânia, incluindo Jerusalém, necessariamente ficassem sob soberania israelense em um eventual acordo de paz.
O que Trump fez foi formalizar este apoio público e definitivo, tornando os EUA a primeira nação do mundo a reconhecer oficialmente os milhares de colonos e assentamentos localizados na parte oriental da Grande Jerusalém israelense, que, na prática, abocanha partes significativas de território palestino em disputa, como parte oficial de Israel. Ou seja, o território colonizado tornou-se legitimamente parte de Israel do ponto de vista americano.
Uma primeira manifestação desta nova abordagem pôde ser vista ainda em novembro deste ano. Uma declaração conjunta das bancadas “Vitória de Israel”, no Congresso dos EUA e no parlamento israelense (o Knesset), pedia que o governo exigisse o reconhecimento palestino de Israel como o Estado judeu. Um dos líderes da bancada, o republicano Bill Johnson, afirmou estar “ansioso para trabalhar com os aliados no Knesset para avançar a ideia de uma vitória israelense como uma abordagem alternativa para o conflito israelo-palestino, uma na qual Israel pare de fazer concessões desnecessárias e, em vez disso, que os palestinos concedam seu objetivo de destruir Israel e aceite que o Estado de Israel está aqui para ficar”.
Essa intenção pode também ser observada na declaração do ministro da Defesa de Israel, Avigdor Liberman, membro de um partido de extrema-direita e, ele próprio, um colono habitante de um assentamento da Cisjordânia. Para ele, a decisão de Trump é correta, pois está oferecendo as condições para uma paz possível. Na sua visão, a questão central a ser negociada com os palestinos é a coesão social da composição étnica dos dois Estados. O caminho, para ele, é a legalização da colonização ocorrida sob status de ilegalidade por meio da troca de terras e populações.
“O modelo de solução atual — de que haverá um estado palestino homogêneo sem um judeu sequer, enquanto Israel será um estado binacional com mais de 20% de árabe que se identificam como palestinos — é inaceitável”, afirmou Liberman. “Se eles têm o direito para um estado homogêneo, então nós também precisamos demandar um estado judeu homogêneo, e, portanto, a solução, como eu vejo, precisa incluir o componente de trocas de terras e população.”
Em resposta, o negociador chefe palestino no processo de paz, Saeb Erekat, afirmou que “o presidente Trump entregou uma mensagem ao povo palestino: a solução de dois Estados tem seu fim. Agora, é tempo de transformar a luta por Um Estado com direitos iguais para todos vivendo na Palestina histórica, do rio (Jordão) até o mar (Mediterrâneo)”.
Apesar da retórica combativa de Erekat, pouco se espera da Autoridade Nacional Palestina, parte central desse processo de paz corrompido e que ajuda a manter a população palestina sob controle enquanto Israel avança na colonização — além de ser sustentada, em grande parte, por doações dos EUA. A decisão de Trump é mais um elemento de uma negociação que já era moribunda e com credibilidade próxima do zero, não necessariamente o seu fim. O jogo de cena, ao que tudo indica, deve permanecer.