No último sábado, 21 de janeiro, os gorros cor de rosa com orelhas de gato tomaram as ruas das principais cidades norte-americanas em uma mobilização social contra o governo. Um dia após a posse do republicano Donald Trump, a Marcha das Mulheres foi uma reação aos seus discursos misóginos, sexistas, xenófobos e racistas. Além da defesa dos direitos das mulheres, a marcha incorporou as pautas dos imigrantes, muçulmanos e da comunidade afro-americana. Os EUA vivenciaram uma das maiores manifestações nas ruas do país, com mais de meio milhão de manifestantes apenas em Washington D.C.
Inicialmente convocada apenas nos EUA, a Marcha das Mulheres repercutiu em mais de 600 “eventos irmãos” em todo mundo, contando com a participação de movimentos políticos e sociais alinhados com a democracia, em solidariedade à sociedade americana que funda o Estado de direito. A questão da luta pela igualdade de gênero e pelo empoderamento feminino, porém, vão muito além das pautas levantadas durante a campanha e com a eleição de Donald Trump. Trata-se de um problema estrutural que transcende governos e partidos.
Todo ano o Fórum Econômico Mundial publica um estudo, intitulado The Global Gender Gap Report, sobre a situação da igualdade de gênero no mundo[1]. Enquanto a maioria dos países apresentou melhora nos indicadores, os EUA foram o único país da OCDE que apresentou um retrocesso. Apesar de ter atingido nota máxima em educação (igual a 1,0) e muito próxima à máxima em saúde (0,975), além de uma boa pontuação em economia (0,752), o maior entrave para a igualdade de gênero nos EUA, segundo esse estudo, está na participação política feminina (0,162). Além do baixíssimo índice de mulheres no parlamento (0,240) e de mulheres em cargos ministeriais (0,353), o país nunca teve uma mulher presidente (permanecendo com nota zero nessa categoria).
Na política, conforme apontado pelo estudo do Fórum Econômico Mundial, de fato há um abismo entre homens e mulheres. Apesar da 19ª Ementa à Constituição dos Estados Unidos, que garantiu o voto feminino, ter sido ratificada em 1920, hoje o Congresso norte-americano é composto apenas por 19,4% de mulheres eleitas. No Senado, dentre os cem senadores em exercício para o biênio 2017-2018, apenas 20 são mulheres.
Na Constituição norte-americana não há sequer uma menção explícita à igualdade de gênero (197 outras Constituições ao redor do mundo o fazem). Em 1923 foi apresentada ao Congresso a Equal Rights Amendment, uma emenda para a igualdade de direitos entre homens e mulheres, mas que nunca teve a aprovação necessária de três quartos dos estados do país. No âmbito internacional, os Estados Unidos nunca ratificaram a Convenção da ONU sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, de 1979. Apenas seis membros da ONU não ratificaram essa Convenção: Irã, Somália, Sudão do Sul, Tonga, Vaticano e Estados Unidos.
Os EUA conquistaram uma boa posição no ranking do Fórum Econômico Mundial, aparecendo em 45º lugar, com nota 0,722, 34 posições a frente do Brasil. Esses números, porém, escondem uma realidade distinta quanto à posição da mulher na sociedade norte-americana.
Nos últimos 20 anos, a violência sexual caiu pela metade no país. Contudo, segundo a RAINN, maior organização contra o abuso sexual nos EUA, a cada 98 segundos uma pessoa é vítima de abuso sexual, e 90% das vítimas são mulheres. Uma em cada 6 mulheres americanas já foram vítimas de estupro ou de tentativas de estupro. Enquanto no Brasil uma pessoa é estuprada a cada 11 minutos e 33 segundos, segundo o 10º Anuário Brasileiro da Segurança Pública, nos EUA, o estupro ocorre uma vez a cada dois minutos.
Se olharmos para os salários, segundo estudo do Bureau of the Census de 2014, os homens brancos ganham 21% a mais que as mulheres brancas em cargos equivalentes. Já dentre os negros, a discrepância salarial entre gêneros é de 36%, e 44% entre os hispânicos. As mulheres também representam dois terços dos trabalhadores que recebem o salário mínimo (equivalente a US$ 7,25 por hora).
Emprego e maternidade é outro ponto sensível para as norte-americanas. Por um lado, enquanto no Brasil uma mulher provavelmente não seria contratada se estivesse grávida, nos EUA o empregador é proibido por lei de perguntar se a mulher é casada ou se tem filhos. Todavia, os EUA, juntamente com Suazilândia, Lesoto e Papua-Nova Guiné, são os quatro únicos países do mundo em que as mulheres não têm direito à licença-maternidade remunerada. A única obrigação das empresas é conceder doze semanas de licença não remunerada e a garantia de manutenção do emprego após esse período. E esse é um ponto de discussão muito sensível entre as mulheres, que muitas vezes deixam de reivindicar esse benefício por medo de prejudicar sua carreira.
Além de não haver licença-maternidade, também não há creches públicas ou alguma estrutura de guarda de crianças pequenas até 5 anos. Nos Estados Unidos, a taxa de mortalidade materna (por complicações na gravidez ou no parto) é a mais alta do mundo desenvolvido, são 12,5 mulheres brancas para cada 100 mil nascidos vivos e 42,8 mulheres negras, segundo a Black Women’s Roundtable. Esses números estão relacionados à ausência de seguro-saúde para um elevado número de mulheres, principalmente entre aquelas que não são ricas o bastante para pagar por ele, nem pobres o suficiente para ter acesso gratuito ao serviço de saúde.
Vale lembrar que o primeiro decreto de Donald Trump como presidente foi flexibilizar a regulamentação do Obamacare, uma lei que assistência médica acessível a cerca de 15 milhões de norte-americanos sem planos de saúde. Para as mulheres, o benefício se traduziria principalmente em serviços de saúde como controle de natalidade e assistência médica após o parto. Nessa semana, ainda, Trump assinou outro decreto que proíbe ONGs e prestadores de serviços de saúde a usarem recursos do governo federal, provenientes da USAID, agência de desenvolvimento internacional do governo norte-americano, para prestar ajuda a mulheres de outros países que quiserem abortar. Esse é mais um passo do republicano em direção ao retrocesso no direito das mulheres. A desconfiança em relação ao governo federal nunca foi tão grande.
Apesar de ter sido convocada em resposta à eleição de Donald Trump, a Marcha das Mulheres simboliza mais do que apenas um evento anti-Trump, ela escancara as desigualdades presentes na sociedade norte-americana. A estrutura social e política dos EUA é repetidamente apresentada, tanto por discursos de acadêmicos, quanto de estadistas, como o modelo de igualdade e participação a ser seguido mundialmente, especialmente pelos países islâmicos. Entretanto, o meio milhão de pessoas nas ruas de Washington D.C. representa um apelo geral pelo respeito aos direitos da mulher e das minorias, uma demanda por igualdade e tolerância.
[1] O estudo calcula, para 144 países, a desigualdade de gênero em 4 categorias: educação (que considera as taxas de alfabetização e matrícula), saúde e sobrevivência (expectativa de vida), participação econômica e oportunidade (que analisa participação na força de trabalho, renda estimada, paridade de salários e cargos assumidos por mulheres) e política (mulheres no parlamento, em posições ministeriais e como chefe de Estado).