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POR BRUNO HUBERMAN
Roy Gutman é um jornalista estadunidense ganhador do prestigiado prêmio Pulitzer, em 1993, por reportagens que narram os crimes de guerra cometidos na Croácia e na Bósnia-Herzegovina durante a violenta desintegração da Iugoslávia. Ele já reportou o apoio dos EUA à contrarrevolução na Nicarágua, a queda dos regimes comunistas na década de 1980, a abertura do Muro de Berlim e a ocupação militar do Afeganistão nos anos 2000.
Atualmente baseado em Istambul, na Turquia, Gutman passou os últimos dois anos empenhado na apuração de uma série de reportagens (pode encontrá-las aqui, aqui e aqui) sobre a participação do governo Bashar Assad no crescimento dos grupos armados islâmicos no Oriente Médio. Segundo os interlocutores do jornalista, os grupos islâmicos envolvidos nos conflitos armados na Síria e no Iraque, em especial o Isis e a Frente Al-Nusra, desenvolveram-se com a ajuda e a conivência de Assad para taxar de terrorista a revolta nacional que emergiu contra o seu regime no início de 2011.
Este estigma permitiu ao presidente sírio reprimir violentamente todo tipo de insurgência popular, enquanto os líderes, diplomatas, jornalistas e observadores internacionais preocupavam-se com a ascensão de uma nova onda de “terrorismo islâmico”. "O Isis é a maior ameaça aos EUA em casa e no exterior", declarou o presidente Barack Obama, maior defensor da saída de Assad do poder entre os líderes ocidentais, em meio à ascensão do Estado Islâmico, em 2014.
A delicada apuração publicada no Daily Beast ajuda a desmitificar a narrativa de que o governo Assad é um mal menor, um bastião da resistência ao imperialismo, um opositor do “terrorismo islâmico” e a melhor forma de se recuperar a estabilidade na Síria, enquanto turcos, sauditas e estadunidenses são apontados como os únicos responsáveis pela ascensão do Isis. Em um momento que o jornalismo está desacreditado e as notícias falsas sobre a tomada de Alepo pelas tropas sírias transformaram-se em um assunto próprio, as reportagens de Gutman parecem uma miragem.
A estratégia de Assad
Durante a invasão dos EUA no Iraque em 2003, narra Grutman, Assad libertou militantes islâmicos detidos em prisões sírias para lutarem contra a ocupação militar estadunidense no país vizinho. O presidente sírio temia que, uma vez derrubado Saddam Hussein — também do partido nacionalista árabe Baath —, o clã Assad seria o próximo na lista das forças ocidentais. Os militantes islâmicos sírios foram decisivos para o aprofundamento da guerra civil no Iraque e a criação do embrião do Isis, a Al-Qaeda do Iraque, em 2004. Anos mais tarde, Assad utilizou a mesma estratégia em um outro contexto.
Em 2011, o corrupto e longevo governo Assad (o pai de Bashar, Hafez, assumiu o poder em 1971) enfrentava uma imensa revolta popular formada principalmente por jovens, estudantes e camponeses. Presentes inicialmente em pequenos vilarejos pobres do interior, os protestos não demoraram para tomar grandes cidades, como Alepo e a capital Damasco.
Temendo que se repetisse na Síria o que se viu em outros países da Primavera Árabe, quando os governos de Ben-Ali, na Tunísia, e de Mubarak, no Egito, tombaram após poucas semanas de manifestações, Assad reprimiu violentamente os protestos desde o primeiro dia, principalmente através de execuções extrajudiciais, tortura e infiltrações de agentes do seu serviço de inteligência, os mukhabarat. As principais lideranças e jornalistas das potências ocidentais criticavam a violência do regime sírio na repressão ao levante popular e aventavam a possibilidade de uma intervenção militar tal qual a que ajudou a derrubar Muammar Kaddafi na Líbia.
A formação de uma resistência armada, principalmente por meio da deserção de militares que se negaram a executar crimes de guerra contra a população civil e formaram o Exército Livre da Síria, fez Assad recorrer a sua antiga tática. Com a justificativa de atender a voz das ruas, que pedia a libertação de presos políticos, o presidente sírio mais uma vez libertou milhares de militantes islâmicos.
Simultaneamente, sob as ordens da cúpula do Baath, os mukhabarat passaram a secretamente plantar ataques com bombas contra alvos de governo toda a vez que uma comitiva de diplomatas, jornalistas ou observadores internacionais estivesse no país. A Al-Qaeda foi apontada como a responsável pelas inteligências síria e estadunidense por atentados em Damasco e Alepo no início de 2012 antes mesmo do início das operações da Frente Al-Nusra — filiada oficial da rede islâmica transnacional na Síria. A reivindicação dos ataques por diferentes organizações, como o Exército Livre, não deixa clara até hoje a sua real autoria.
O estigma que foi marcado na multifacetada resistência popular síria permitiu que Assad violentamente reprimisse os rebeldes em nome do combate ao terror islâmico. Os conselhos populares formados pelos insurgentes em diversas cidades sírias foram desmantelados e a oposição foi ficando cada vez mais restrita a milícias islâmicas das mais diversas filiações. Uma amostra do massacre em curso na Síria por ações terroristas do governo pode ser lida em português na reportagem “O Arquivo Assad”, do jornalista Ben Taub, publicada na New Yorker e traduzida pela Piauí.
Assad e o Isis
Em sua série de reportagens, Gutman narra ainda como os militantes islâmicos libertos por Assad durante a Primavera Árabe fizeram parte da formação de grupos como a Frente Al-Nusra e o Isis — alguns até envolveram-se em atentados terroristas internacionais, como o de novembro de 2015 em Paris, na França. A tomada do noroeste e do sul da Síria e a criação de um proto-estado do Isis, que tem em Raqqa a sua capital, teria sido acompanhada de perto e permitida pela inteligência síria.
O jornalista mostra como, durante a guerra civil, as tropas regulares sírias e as milícias do Isis evitaram o confronto direto, inclusive chegando a cooperar no campo de batalha. Em abril de 2013, por exemplo, durante a conquista de Raqqa pelo Isis, o exército sírio teria oferecido pouca resistência. Já em outubro de 2015, quando guerrilheiros do Estado Islâmico tomaram uma escola de infantaria dominada por forças rebeldes no norte de Alepo, a força aérea síria teria contribuído com bombardeios.
Embora sejam contundentes, as reportagens contém algumas lacunas, como ao não trazer a participação de turcos, israelenses, estadunidenses, saudistas, franceses e russos na formação dos grupos islâmicos, em especial o Isis, e no conflito na Síria de um modo geral — a ressalva fica para a contribuição do ex-primeiro-ministro iraquiano Nouri al-Maliki, que libertou militantes islâmicos na mesma época que Assad.
Os textos de Gutman, entretanto, são fundamentais por nos mostrar de forma empírica como a manutenção de Assad na presidência nos últimos cinco anos só foi possível graças a essa estratégia bélica e narrativa. A brutal tomada de Alepo com o apoio de Irã, Rússia e Hezbollah é mais um capítulo da destruição criativa de Assad e dos dirigentes do Baath em nome da sobrevivência própria no poder.