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As interpretações do retrato vermelho do rei Charles: do genocídio colonial a Satã

Sincericídio ou pegadinha? De forma consciente ou inconsciente, o artista Jonathan Yeo fez o mundo ver a monarquia sob sua perspectiva mais sangrenta

Detalhe do retrato oficial de Charles III por Jonathan Yeo
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CYNARA MENEZES

Poucos monarcas do mundo personificam tão bem a decadência da monarquia como o rei britânico Charles III. O espanhol Felipe de Bourbon até que tem se saído bem para quem teve um pai adúltero, assassino de elefantes e ladrão como Juan Carlos, obrigado a viver fora do próprio país para não ser preso, além de um cunhado na cadeia por corrupção. Mas Felipe tem a vantagem de ser jovem, de dar um ar de "renovação" ao mofado sistema de governo, enquanto Charles, aos 75 anos, vive o pior de dois mundos: nem possui o charme da juventude nem aparenta ter adquirido a sabedoria dos mais velhos.

Em setembro de 2022, uma das primeiras aparições públicas do novo rei britânico apresentou Charles em cenas patéticas ao assinar sua proclamação, ralhando com empregados para que lhe limpassem a mesa e fazendo caretas como um menino mimado da terceira idade.

Charles, cuja longevidade da mãe levou-o a ser coroado monarca na prorrogação da vida, tampouco pode se gabar dos parentes: as tias paternas eram nazistas e seu irmão, Andrew, está envolvido até o pescoço com a rede de pedofilia de Jeffrey Epstein (recomendo fortemente A Grande Entrevista, em cartaz na Netflix, que mostra os bastidores da entrevista que Andrew deu à BBC sobre o assunto e que o levaria de vez à ruína).

Um observador atento pôde perceber, há uma semana, durante a apresentação do primeiro retrato oficial do rei Charles III pelo pintor Jonathan Yeo, que Charles não ajuda a mudar a percepção de que é um covarde ao se assustar com a própria cortina que puxa para desvelar o quadro, como se temesse que a estrutura fosse desabar sobre ele.

O quadro em si causou espanto por um aparente sincericídio, consciente ou inconsciente, do artista sobre a monarquia. Ora, sabe-se que o colonialismo britânico matou, apenas na Índia, entre 12 e 29 milhões de pessoas de fome durante os 89 anos em que o país asiático ficou sobre seu domínio, ao exportar toneladas de trigo para o império enquanto os indianos não tinham o que comer. Em 1943, mais de 4 milhões de bengalis morreram de fome quando Winston Churchill, que costumava comparar os indianos a animais, mandou comida da colônia para os soldados britânicos e de outros países durante a guerra.

Na África, uma das atrocidades cometidas pelos britânicos foram os campos de concentração na África do Sul, onde mais tarde apoiariam o regime do apartheid para continuar a expoliar os diamantes do país –o maior já encontrado, o Cullinan I, orna a cabeça do cetro de Charles III. No final do século 19, os boêres (imigrantes de origem holandesa, alemã e dinamarquesa) disputavam o poder na África do Sul com os britânicos, que migravam massivamente para o país após a descoberta de ouro na região de Witwatershand, em 1886. 

Lizzie Van Zyl, a menina boêr que morreu de fome e febre tifoide num campo de concentração

Os britânicos esmagaram os boêres, expulsaram-nos de suas casas e fazendas e os submeteram a campos de concentração, assim como aos negros africanos que se aliaram a eles. Pelo menos 40 campos de concentração abrigaram cerca de 150 mil boêres espremidos em tendas e outros 60 para ao redor de 115 mil negros. Ali, padeceriam de fome e doenças como a febre tifoide e a malária. Entre 18 e 28 mil boêres morreram, 80% deles crianças. Os campos de concentração durariam até 1902, após a pacifista britânica Emily Hobhouse ter feito uma visita de inspeção e contado os horrores ao mundo –mas só da parte boêr.

Dezenas de postagens viralizaram ao associar a cor da pintura ao sangue derramado pelo colonialismo britânico. Teve quem dissesse que o verdadeiro nome do retrato é “O Sangue que o Império Britânico Derramou em Todo o Mundo Está em Minhas Mãos”

Dos campos de concentração para os negros sabe-se que, ao contrário dos destinados aos boêres, possuíam mais prisioneiros homens. Eram construídos ao lado de ferrovias, para providencialmente colocar os cativos para trabalhar nelas, de graça, e isso que a escravidão nas colônias havia sido declarada abolida pela monarquia britânica em 1838 –alguns defendem, inclusive, que sejam chamados de "campos de trabalho forçado".

Yeo explicou ter usado a cor vermelha para homenagear as Welsh Guards, as tropas de infantaria de elite do Exército britânico, mas quem pode com o inconsciente, não é mesmo? No X (ex-twitter), a rede tóxica de Elon Musk, dezenas de postagens viralizaram ao associar a cor da pintura ao sangue derramado pelo colonialismo britânico. Teve quem dissesse que o verdadeiro nome do retrato é "O Sangue que o Império Britânico Derramou em Todo o Mundo Está em Minhas Mãos".

A outra interpretação mais difundida do quadro, também nada lisonjeira, é de que Charles parece estar queimando no inferno. "Sem ironia, eu amo o novo retrato do rei Charles pela forma como parece maligno. O retrato do arquidemônio do inferno", escreveu um. "Bacana essa tentativa de fazer algo não-convencional, mas este retrato do rei Charles parece o pôster de um filme de terror assustador", comentou outra.

O pior foi quando alguém descobriu que, ao colocar a pintura de cabeça para baixo e espelhada, aparece mesmo a imagem de um ser satânico. Bloody hell! 

Bu! A imagem que aparece no retrato de cabeça para baixo

Teria o pintor Jonathan Yeo pregado uma peça na realeza britânica? "Se isso fosse visto como traição, eu poderia literalmente pagar com minha própria cabeça, o que seria uma forma apropriada para um pintor de retratos morrer: ter a cabeça removida!", brincou.

Mas o artista britânico possui antecedentes em termos de provocação ao mundo político: em 2007, após uma encomenda oficial da presidência dos EUA ter sido cancelada, ele "se vingou" fazendo uma colagem de George W.Bush com recortes de revistas pornográficas. Prestem atenção na orelha direita. 

Bush por Yeo

Se, com este currículo, a monarquia britânica confiou em Yeo para confeccionar o retrato do novo rei, devia estar preparada para a controvérsia. Difícil será lidar com a mensagem subliminar do genocídio colonial pendurado na parede para a eternidade, ao lado de outros quadros reais feitos por artistas mais ciosos do próprio pescoço.

Menos mal que o quadro sangrento de Charles ficará numa galeria no Draper's Hall, a 6 km do Palácio de Buckingham, longe dos olhos e da "sensibilidade com a natureza" de Sua Majestade, representada no quadro por uma borboleta-monarca prestes a pousar sobre o ombro do rei. So cute!