CYNARA MENEZES
No dia 10 de maio de 1990, dois meses após a posse do primeiro presidente eleito pós-ditadura militar, Fernando Collor de Mello, a repórter Eliane Sobral adentrou a sucursal de Brasília do jornal O Estado de S.Paulo com um furo: o general da reserva Newton Cruz, ex-chefe do famigerado SNI (Serviço Nacional de Informações) havia criticado duramente o presidente, sugerindo que desse "um tiro na cabeça".
"Não consigo conceber como estadista alguém que diz só ter uma bala na agulha. Estadista que só tem uma bala na agulha deve usá-la na cabeça", disse Nini, como era conhecido o general. A frase trazia à memória a célebre sentença do último ditador brasileiro, João Baptista de Figueiredo, em 1979, a um menino de 10 anos que lhe perguntou como sustentaria a família com um salário mínimo: "Eu dava um tiro no coco".
Bolsonaro saiu pela porta dos fundos do Exército e continua a enlamear as Forças Armadas porque se cercou de militares tão baixo nível quanto ele. Os áudios revelados pela investigação mostram o linguajar de Mario Fernandes, capaz de proferir 53 vezes a palavra “porra” nas mensagens golpistas
O irmão de Figueiredo, o general Euclydes Figueiredo, também se unira a Nini naquele momento para fazer bravatas ao novo presidente. Euclydes, Newton Cruz e o então comandante militar do Sudeste, Pedro Luís de Araújo Braga, se insurgiram contra a extinção do SNI, o famigerado Serviço Nacional de Informações da ditadura, na reforma admistrativa feita pelo governo recém-empossado.
Collor, para mostrar autoridade e prevenir alguma quartelada, declarou que não admitiria críticas dos militares e no mesmo dia da publicação da entrevista mandou o ministro do Exército, general Carlos Tinoco, prender Nini por 10 dias e repreender Euclydes, ex-presidente da Escola Superior de Guerra, por escrito. Aquela era a primeira vez, desde que os brasileiros voltaram a votar para a presidente, que um general era preso.
No ano anterior, José Sarney, eleito pelo Colégio Militar como vice de Tancredo Neves, também tinha botado Newton Cruz e Euclydes em cana por 10 e oito dias, respectivamente, porque o primeiro chamara o ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, de "covarde", no que foi apoiado pelo irmão de Figueiredo. No total, foram três os generais presos no Brasil desde o final da ditadura.
Em 1988, outro general da reserva, Francisco Batista Torres de Mello, também tivera sua prisão ordenada por Leônidas por criticá-lo e à cúpula do governo. Nos últimos 34 anos, desde a detenção de Nini, nenhum general foi preso novamente –até agora, com as prisões dos generais Mario Fernandes (três estrelas) e Braga Netto (quatro estrelas) por participar da tentativa de golpe contra o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva.
Após três décadas de relativa calmaria nas Forças Armadas a não ser bravatas por parte do Clube Militar, o bolsonarismo volta a assanhar os arruaceiros de farda. Nada do que está acontecendo é coincidência: os últimos generais presos têm ligações umbilicais com os golpistas de hoje
O próprio Jair Bolsonaro, então capitão do Exército, havia sido punido em 1986 por Leônidas com uma prisão por 15 dias por ter publicado, na revista Veja, o artigo O Salário Está Baixo, em que reclamava dos soldos pagos aos militares, e que alguns estudiosos apontam como o marco do início de sua carreira política.
No ano seguinte, Bolsonaro informou à repórter Cássia Maria, da mesma Veja, a existência de um plano para explodir bombas de baixa potência nos banheiros da Vila Militar, da AMAN e de alguns quartéis como forma de protesto contra os baixos salários. Em 1988, Bolsonaro acabou absolvido pelo STM (Superior Tribunal Militar) e foi para a reserva. No mesmo ano se elegeu vereador pelo Rio.
Após três décadas de relativa calmaria nas Forças Armadas a não ser bravatas por parte do Clube Militar, o bolsonarismo volta a assanhar os arruaceiros de farda. Nada do que está acontecendo é coincidência: os últimos generais presos possuem ligações umbilicais com os de hoje. Euclydes era tio-avô de Paulo Figueiredo, o pseudojornalista indiciado pela Polícia Federal por incitar os militares ao golpe e disseminar notícias falsas contra as urnas eletrônicas.
Nini, cujo apoio durante a campanha de 1989 foi recusado por Collor, era um ídolo de Bolsonaro, que enviou uma coroa de flores com os escritos "Tributo à democracia" por ocasião de sua morte, em 2022. O então presidente era grato a Nini por ter sido sua testemunha de defesa no processo que sofreu e por tê-lo apoiado diante do STM –é atribuída à influência de Newton Cruz a absolvição do capitão no tribunal.
Outro traço em comum entre Bolsonaro e Newton Cruz é a falta de trato com jornalistas. Em 1983, durante a ditadura, Nini ordenou que um repórter calasse a boca e lhe deu um empurrão.
Em 2020, o então presidente Bolsonaro mandou os repórteres calarem a boca por duas vezes ao ser questionado sobre a substituição do diretor da Polícia Federal no Rio de Janeiro, que segundo reportagem da Folha de S.Paulo teria sido ordenada por ele para proteger seus familiares.
Bolsonaro saiu pela porta dos fundos do Exército e continua a enlamear as Forças Armadas porque se cercou de militares tão baixo nível quanto ele. Os áudios revelados pela investigação mostram o linguajar de Mario Fernandes, capaz de proferir 53 vezes a palavra "porra" nas mensagens golpistas, assim como Bolsonaro havia proferido uma série de palavrões durante a famosa reunião ministerial em que enquadrou seu ministro da Justiça, Sergio Moro, justamente por ter reclamado de interferência na PF.
Bolsonaro, Braga Netto, Fernandes, Newton Cruz, o general Heleno e outros 22 militares da ativa e da reserva indiciados pela PF por participar da tentativa de golpe fazem parte de um bando de arruaceiros que não honram a própria farda e não prezam pelo respeito à hierarquia exigido pelas Forças Armadas. São insubordinados, ineptos e descumpridores da disciplina, tudo que um bom soldado não deveria ser.
Se os indisciplinados atuais não forem punidos como foi Nini no passado, seguirão promovendo a baderna nos quartéis –e fora deles.
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