ELENA JACKSON ALBARRÁN, NO THE CONVERSATION
TRADUÇÃO CYNARA MENEZES
Esta é a temporada de patriotismo na América Latina, em que muitos países comemoram sua independência do domínio colonial. De julho a setembro, praças em países do México a Honduras e Chile se enchem de multidões vestidas e pintadas nas cores nacionais, desfiles trazem participantes vestidos como heróis da independência, fogos de artifício explodem no céu e estudantes encenam batalhas históricas.
Por debaixo dessas manifestações ondula uma maré inquieta: os legados coloniais ainda amarram as Américas aos seus conquistadores ibéricos. E quando o calendário vira para outubro, outro feriado expõe tensões similares: o Dia de Colombo em 12 de Outubro nos países hispânicos (no Brasil o feriado é por conta da padroeira, Nossa Senhora Aparecida, não do descobrimento da América).
Os sentimentos dúbios sobre feriados para comemorar os colonizadores sofreu uma reviravolta a partir de 1992. Os 500 anos da chegada de Colombo representaram uma outra forma de colonialismo aos olhos de muitos latino-americanos, à medida que novas corporações multinacionais conspiravam com chefes de Estado para espoliar petróleo, lítio, água e abacates do continente
Desde 1937 os EUA celebram o feriado na segunda segunda-feira do mês, comemorando a chegada do explorador ao Novo Mundo em 1492. A data permanece feriado nacional, ainda que em muitos Estados e cidades ele tenha sido renomeado como Dia dos Povos Indígenas, rejeitando Cristóvão Colombo, símbolo do imperialismo.
Já a maioria dos latino-americanos conhecem o 12 de Outubro como Día de la Raza, que também celebra a chegada de Colombo ao Novo Mundo e o bando de conquistadores ibéricos que se seguiu. Mas comemorar o evento é ainda mais carregado nestes países, que abrigam os mais lucrativos bens territoriais do Império Espanhol e conquistas espirituais manipuladoras. Dias antes de tomar posse em setembro, a presidenta mexicana Claudia Sheinbaum reiterou a demanda de seu antecessor López Obrador de que o rei da Espanha pedisse perdão pelo genocídio e a exploração da "conquista" 500 anos atrás.
Como historiadora da América Latina, tenho prestado atenção às formas como os calendários sinalizam os valores "oficiais" da nação e como os países debatem os significados destes feriados.
O primeiro encontro entre o imperador azteca Moctezuma e o conquistador Hernan Cortés aconteceu em 8 de novembro de 1519 –com Cortés protegido por uma entourage de 300 espanhóis, milhares de aliados indígenas e escravizados, e centenas de africanos, livres ou não. Este momento de contato iniciou uma transformação de 500 anos do México em uma nação "mestiça": uma identidade híbrida com raízes europeias e indígenas.
Durante o período colonial, diferenças raciais eram codificadas em lei, e aqueles com sangue espanhol "puro" desfrutavam de privilégios legais sobre as categorias racialmente misturadas abaixo deles. O século 19 trouxe a independência da Espanha e ideiais liberais que promoveram igualdade racial –em tese–, mas na realidade a influência europeia continuou prevalecendo.
Foi a Espanha quem primeiro propôs o Día de la Raza em 12 de outubro para comemorar os 400 anos da chegada de Colombo às Américas –o que implicava em celebrar a contribuição espanhola para a mestiçagem. A celebração era parte de uma tentativa de fortalecer o nacionalismo na Espanha, à medida que o poder colonial em declínio continuava a se retirar do hemisfério que manteve sob controle por quase quatro séculos.
A Espanha também esperava exportar o feriado inventado para todo o restante da América, fortalecendo as afinidades culturais transatlânticas ameaçadas pela crescente influência dos EUA. O Día de la Raza se espalhou pelo continente como sinônimo da celebração da influência europeia.
No México, a comemoração do 1892 empoderou membros da elite política que promovia os investimentos e a cultura europeia como o modelo para a modernização do país. Eles usavam a ocasião para exaltar a influência civilizatória da "madre patria", justificando a conquista e o colonialismo como um período de domínio benevolente.
Poucos anos depois, porém, a vitória dos EUA na guerra Hispano-Americana varreu os últimos vestígios do império espanhol do hemisfério. A saída da Espanha deu lugar a um fenômeno paradoxal: um crescente espírito patriótico nos países latino-americanos, ao mesmo tempo que uma crescente pressão econômica e influência cultural dos EUA.
A revolução mexicana de 1910 deu início ao nacionalismo mestiço que logo se estendeu para outros países. Na Nicarágua de 1930, Augusto Sandino começou uma revolução para expulsar os marinheiros dos EUA e convocar pela unificação da "Raça Indo-Hispânica". Enquanto isso, o intelectual peruano José Mariátegui imaginou uma nação moderna construída a partir dos ideais de uma sociedade coletivista inspirada pelo sistema inca Ayllu. E, no México, concursos de beleza celebrando traços nativos ganharam popularidade entre as classes sociais acostumadas a frequentar lojas de departamento buscando produtos importados de Paris.
Ainda assim, a tendência de enfatizar a ancestralidade cultural espanhola em detrimento da indígena persistia. No final dos anos 1930, matérias sobre Outubro na revista infantil Palomilla celebrava a chegada de Colombo como um ato de heroísmo que trouxe para a região uma língua e uma religião em comum.
Enquanto isso, os EUA viam os sentimentos Pan-Hispânicos como uma ameaça: objetivos econômicos espanhóis camuflados em solidariedade racial e cultural. Para ajudar a fortalecer as alianças hemisféricas, Franklin D.Roosevelt proclamou um novo feriado em 14 de abril de 1930: o Dia Pan-Americano ou Día de las Américas.
O feriado procurava contrabalançar as narrativas tanto do Dia de Colombo como do Día de la Raza e marcou a Política de Boa Vizinhança na América Latina –uma forma "suave" de imperialismo que promovia solidariedade e irmandade, pelo menos na aparência.
O Equador chama o 12 de Outubro de Dia do Interculturalismo e Identidade Étnica; a Argentina celebra o Dia do Respeito pela Diversidade Cultural; na Nicarágua é o Dia da Resistência Indígena, Negra e Popular; na Colômbia é o Dia da Diversidade Étnica e Cultural; e, na República Dominicana, Dia Intercultural
A União Pan-Americana, uma organização interamericana com sede em Washington, via a nova data como uma oportunidade para criar tradições em comum ao longo do hemisfério. Ela promoveu intensamente as celebrações do Dia Pan-Americano, principalmente entre estudantes, exortando os professores a implementar jogos, quebra-cabeças, competições e canções criadas nos escritórios da União Pan-Americana.
O feriado teve uma recepção entusiástica nos EUA. Moradores do centro-oeste doaram sombreros para as paradas, e clubes de língua espanhola na Califórnia organizavam concursos celebrando as bandeiras das nações americanas. Mas a comemoração na América Latina foi no máximo morna. A OEA (Organização dos Estados Americanos), sucessora da União Pan-Americana, ainda reconhece o Dia Pan-Americano, mas isso nunca ganhou força na América Latina e desapareceu nos EUA durante a Segunda Guerra Mundial.
Os sentimentos dúbios na América Latina sobre feriados para comemorar os colonizadores sofreram uma reviravolta a partir de 1992. O aniversário de 500 anos da chegada de Colombo representou uma outra forma de colonialismo aos olhos de muitos latino-americanos, à medida que uma nova onda de corporações multinacionais conspirava com chefes de Estado para espoliar o petróleo, o lítio, a água e abacates do continente.
Ativistas usaram a comemoração para chamar a atenção para as persistentes desigualdades econômicas, sociais, raciais e culturais. Em particular, a celebração inspirou movimentos pelos direitos indígenas, alguns dos quais criaram um “anti-quincentenário” para celebrar “500 anos de resistência.” O Día de la Raza vem sendo desde então renomeado para refletir os sentimentos anti-coloniais.
O Equador chama o 12 de Outubro de Dia do Interculturalismo e Identidade Étnica; a Argentina celebra como Dia do Respeito pela Diversidade Cultural; a Nicarágua agora se refere a ele como Dia da Resistência Indígena, Negra e Popular; na Colômbia é o Dia da Diversidade Étnica e Cultural; e a República Dominicana chama de Dia Intercultural.
Em alguns lugares, renomear o feriado tem chamado a atenção para a cultura e direitos indígenas. Os bolivianos, por exemplo, vestiram em 2020 a estátua da rainha Isabel de Castela com um traje tradicional “aguayo", transformando-a em uma mulher indígena. No entanto, alguns críticos sugerem que remover as referências sobre os colonizadores do feriado apaga uma importante memória da conquista e seu doloroso legado.
Como nos EUA, monumentos a colonizadores estão sendo derrubados –incluindo o monumento a Columbo que ocupava um lugar de destaque em La Reforma, uma das vias mais movimentadas da Cidade do México.
No lugar dele foi colocada uma nova instalação: a silhueta púrpura de uma garota com o punho erguido, em homenagem às mulheres ativistas da América Latina. Ela anuncia uma nova era de estátuas em La Reforma, com heróis para o futuro –em vez de voltados para o legado colonial do passado.