Por Joaquín C.Bretel, no Pijama Surf
Tradução Cynara Menezes
Só um homem como Franz Kafka para ver o que ninguém vê e produzir a mais genial e original interpretação de Dom Quixote de la Mancha. O que define Kafka é seu olhar curioso e silencioso, sua capacidade de suportar a tensão e ver o que ninguém enxergou (porque não pôs atenção suficiente). Walter Benjamin escreveu que não sabemos se Kafka rezava, mas sua capacidade de prestar atenção recordava o que disse Malebranche: "a atenção é a oração natural da alma".
O pequeno conto que compartilhamos a seguir foi intitulado A Verdade Sobre Sancho Pança. Kafka admirava profundamente o texto de Cervantes e produziu essa interpretação celebrada por Jorge Luis Borges, pois constitui o exato ponto em que a imaginação destes dois escritores se encontra, como dois grandes gênios da literatura fantástica e das interpretações alternativas da literatura.
A Verdade Sobre Sancho Pança*
Sancho Pança, que, por sinal, nunca se vangloriou disso, no curso dos anos conseguiu, oferecendo-lhe inúmeros romances de cavalaria e de salteadores nas horas do anoitecer e da noite, afastar de si o seu demônio –a quem mais tarde deu o nome de D. Quixote– de tal maneira que este, fora de controle, realizou os atos mais loucos, os quais, no entanto, por falta de um objeto predeterminado –que deveria ser precisamente Sancho Pança–, não prejudicaram ninguém. Sancho Pança, um homem livre, acompanhou imperturbável, talvez por um certo senso de responsabilidade, D. Quixote nas suas sortidas, retirando delas um grande e proveitoso divertimento até o fim de seus dias.
Para Kafka, o verdadeiro e único protagonista não é Dom Quixote e sim Sancho Pança. Este, atormentado pelos demônios e para sobreviver, se vê obrigado a inventar Dom Quixote
O grande editor e escritor italiano Roberto Calasso analisa esta interpretação, que lhe parece a mais bela de todas:
Para Kafka, o verdadeiro e único protagonista não é Dom Quixote e sim Sancho Pança. Este, atormentado pelos demônios e para sobreviver, se vê obrigado a inventar Dom Quixote. E o mais extraordinário é que, ao final das linhas que lhe dedica, Kafka diz que Sancho Pança é um homem livre. É a única vez que menciona a palavra livre. Nesta transferência de demônios, Kafka é como Sancho Pança.
E esse é o ponto essencial: Kafka se identifica secretamente com Sancho Pança. Ele também criou toda a sua literatura, ele, como ninguém mais, para lidar com seus demônios, para transformá-los ou transferi-los. O que é a grande literatura senão uma forma de transferir demônios ou de capturar o espírito? A literatura de Kafka está possuída por estes demônios, alguns deles abstratos, e sempre com uma dimensão metafísica. Dom Quixote é o sonho mágico, o sonho criativo de Sancho Pança, da mesma forma que Gregor Samsa é para Kafka ou, de uma forma mais enigmática e pesadelesca, o que acontece com K em O Castelo e a Josef K em O Processo. Fica, no entanto, a pergunta: e Kafka, era um homem livre?
*Publicado no Brasil em Narrativas do Espólio pela Companhia das Letras, com tradução de Modesto Carone