POR CHANTAL MOUFFE, no Open Democracy
TRADUÇÃO: MAURÍCIO BÚRIGO
O fim do populismo de esquerda tem sido recentemente anunciado por vários de seus críticos, os quais alegam que, já que os partidos populistas de esquerda não foram capazes de alcançar seus objetivos, é hora de retornar à tradicional concepção de classe na política. Quero contestar esta posição e argumentar que, na presente conjuntura, uma estratégia populista de esquerda é mais relevante do que nunca. A Covid-19 exacerbou as desigualdades existentes e acentuou a crise orgânica do neoliberalismo. Jamais haverá retorno ao "negócios, como sempre" (business as usual) após a pandemia.
Sim, foi isso o que aconteceu após a crise econômica de 2008. Mas naqueles anos a hegemonia do neoliberalismo seguia quase inconteste e hoje o contexto político é diferente. A crise de 2008 colocou em primeiro plano os limites do capitalismo financeiro, e a globalização neoliberal deixou de ser considerada a nossa sina. Após anos de "pós-política", quando não havia diferenças fundamentais entre políticas de direita e esquerda, estamos testemunhando um “retorno à política". Hoje, movimentos de esquerda radical que contestam o social-liberalismo dos partidos de centro-esquerda existem em vários países e diversas formas de ativismo estão florescendo em muitos domínios. Fridays for Future (Sextas-feiras pelo Futuro), o movimento de juventude em defesa do clima, e as mobilizações antirracistas do Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) trouxeram visibilidade internacional a estas lutas.
As duas maiores paixões na política são o medo e a esperança, e é crucial agrupar as pessoas em torno de um projeto que não seja conduzido pelo medo, mas pela perspectiva de um mundo onde os princípios de igualdade e soberania popular seriam implementados
Acho que o que veremos em consequência da Covid-19 será um confronto entre diferentes estratégias de como se lidar com a crise econômica, social e ecológica que a pandemia colocou em primeiro plano. Neoliberais sem dúvida tentarão usar o poder estatal para reassegurar a predominância do capital. Este "neoliberalismo estatal" poderia estar escorado por medidas autoritárias em certos países, confirmando a tese de Wolfgang Streeck de que democracia e capitalismo se tornaram incompatíveis. O autoritarismo neoliberal poderia tomar uma forma digital, como no "Screen New Deal" vislumbrado por Naomi Klein. Como o atual debate acerca de uma resposta tecnológica apropriada à crise sanitária atesta, há uma crescente tendência de se considerar que a solução consiste em conseguir aplicativos para se controlar a saúde da população. A crise do coronavírus representa uma grande oportunidade para os gigantes digitais de se estabelecerem como os agentes de uma política de saúde plenamente computadorizada. Sua ambição de estender seu controle a outros domínios poderia ser legitimada ao promoverem vigorosamente o "solucionismo tecnológico" em voga analisado por Evgeny Morozov. Em seu livro To save everything, click here (Para salvar tudo, clique aqui), Morozov nos previne contra os perigos dessa ideologia do solucionismo promovida pelo Vale do Silício e segundo a qual todos os problemas, até mesmo os políticos, têm uma solução tecnológica. Ele salienta que os solucionistas advogam medidas pós-ideológicas e dispõem da tecnologia para evitar a política.
A crença de que plataformas digitais pudessem providenciar um alicerce para a ordem política faz coro com a alegação de políticos da terceira via de que os antagonismos políticos tenham sido superados e que esquerda e direita sejam "categorias zumbis". O solucionismo é de fato uma versão tecnológica da concepção pós-política que se tornou dominante durante os anos 1990. Ele facilita a aceitação de formas pós-democráticas de tecnoautoritarismo que permanecem imunes ao controle democrático. Uma versão neoliberal de tecnoautoritarismo pode ainda não ser o estado tecnototalitário de vigilância que alguns temem, mas poderia representar o primeiro passo nessa direção.
Uma resposta diferente vem dos partidos populistas de direita. Alegando serem a voz do povo, eles estão acusando as elites neoliberais de serem responsáveis pela crise, por conta de sua política de globalização e seu abandono da soberania nacional. Para restabelecer esta soberania, eles advogam uma política de imunização que protegeria os nacionais ao restringir drasticamente a democracia a certas categorias e impor barreiras muito estritas à imigração. Seu discurso anti-establishment e sua rejeição do domínio de corporações transnacionais são bem recebidos em vários grupos e ecoa nos setores populares. Eles poderiam constituir uma força de resistência contra o domínio pós-político do autoritarismo high-tech, mas ao custo de impor um tipo de autoritarismo nacionalista de natureza xenófoba e socialmente conservadora.
Uma das consequências da pandemia é ter aumentado nas pessoas a necessidade de proteção. Em face do perigo de soluções autoritárias para a crise, é imperativo que a esquerda atenda a esta exigência de proteção
Para se opor a essas duas formas de autoritarismo e ter qualquer influência na direção que nossas sociedades hão de tomar após a pandemia, a esquerda precisa de mais que boas políticas. Ela deveria entender também como a Covid-19 produz reações emocionais que podem ser exploradas para fomentar avanços antidemocráticos.
Karl Polanyi nos fornece neste ponto insights valiosos. No seu livro The Great Transformation, analisando as consequências devastadoras das medidas do liberalismo do século 19 em tratar a terra, o trabalho e o dinheiro como mercadorias, Polanyi trouxe à luz como uma sociedade, posta em perigo pelo deslocamento produzido por avanços da mercantilização, reagiu nos anos 1930 com um contra-movimento defensivo para se proteger a si mesma, readaptando a economia a necessidades sociais ao reencaixar o mercado dentro de estruturas sociais. Ele também indicou que as resistências ao deslocamento produzido pelos avanços da mercantilização não estão fadadas a tomar uma forma democrática. Na verdade, nos anos 1930 elas levaram ao New Deal de Roosevelt, mas também ao fascismo ou stalinismo.
A ideia de Polanyi de um contra-movimento ganhou grande aceitação nos anos recentes para explicar o crescimento global de movimentos sociais contemporâneos que resistem ao neoliberalismo. O ângulo do seu argumento que eu gostaria de enfatizar está na importância que ele atribui ao elemento de autoproteção, o qual ele vê como se constituísse a força motriz do contra-movimento. Sua análise mostra que, quando sociedades experimentam sérios distúrbios nos seus modos de existência, a necessidade de proteção se torna a exigência central, e que é provável que as pessoas sigam aqueles que elas acreditam que melhor possam proporcioná-la. (Uma análise excelente da importância de Polanyi para se entender movimentos populistas atuais é encontrada em Jorge Tamames, For the People. Left Populism in Spain and the US, Lawrence & Wishart, Londres, 2020.)
Se faço esta referência a Polanyi, é porque acho que hoje nos encontramos numa situação análoga. De fato, uma das consequências da pandemia é ter aumentado a necessidade de proteção. A necessidade de proteção explica por que muitas pessoas estão atualmente prontas a aceitarem formas de controle digitais às quais até então se opunham. Sem dúvida, ela poderia beneficiar populistas de direita se eles fossem capazes de convencer as pessoas de que proteção requer que se promova uma visão de soberania em termos de nacionalismo exclusivo.
Seria um erro político sério para a esquerda ceder à direita noções como soberania e protecionismo. É urgente se engajar numa batalha ideológica para ressignificá-los, articulando-os com valores-chave da tradição democrática, a fim de desativar suas possíveis conotações autoritárias
Em face do perigo de soluções autoritárias para a crise, é imperativo que a esquerda atenda a esta exigência de proteção. Infelizmente, setores importantes da esquerda adotaram a concepção de mundo neoliberal pós-política que postula o fim do modelo antagônico de política e concebe o progresso moral como a criação de um mundo sem fronteiras onde tudo pode se mover livremente e sem impedimento. A defesa do livre comércio constitui para eles um artigo de fé e eles tendem a ver com desconfiança o desejo de proteção das classes populares, como se fosse uma rejeição aos valores cosmopolitas que acalentam.
Eu sustento que seria um erro político sério para a esquerda ceder à direita noções como soberania e protecionismo. Impediria a elaboração de um projeto político capaz de oferecer qualquer ressonância com as exigências das classes populares. É portanto urgente se engajar numa batalha ideológica para ressignificar soberania e protecionismo, articulando-os com valores-chave da tradição democrática, a fim de desativar suas possíveis conotações autoritárias. Isto não deveria ser visto como "ceder" ao populismo de direita, como os populistas de esquerda são às vezes acusados de fazer. É sempre através de batalhas políticas que o sentido de noções políticas-chave é construído. e o confronto sobre seu significado é uma dimensão crucial da luta hegemônica.
A crise atual exige uma estratégia populista de esquerda capaz de criar uma força coletiva popular que possa realizar uma nova hegemonia a fim de recuperar e aprofundar a democracia. Uma estratégia populista de esquerda reconhece que a política é uma atividade partidária na qual os afetos cumprem um importante papel. Uma fronteira política entre "nós" e "eles", o "povo" e a "oligarquia", é capaz de mobilizar a dimensão afetiva que está em jogo na construção de formas coletivas de identificação. Isto é algo que a estrutura teórica racionalista que, com demasiada frequência, dá forma à política de esquerda é incapaz de considerar. Ideias corretas não são suficientes e, como Spinoza nos fez lembrar, ideias só têm força quando se juntam aos afetos. Na política não basta ter um programa bem elaborado. Para se gerar lealdade e levar as pessoas a agir, há de se comunicar afetos que ressoem com seus desejos e experiências pessoais.
Uma estratégia populista de esquerda reconhece que a política é uma atividade partidária na qual os afetos cumprem um importante papel. Ideias corretas não são suficientes e, como Spinoza nos fez lembrar, ideias só têm força quando se juntam aos afetos
As duas maiores paixões na política são o medo e a esperança, e para a esquerda é crucial agrupar as pessoas em torno de um projeto político que não seja conduzido pelo medo, mas pela perspectiva de um mundo diferente onde os princípios democráticos de igualdade e soberania popular seriam implementados. Uma ofensiva contra-hegemônica populista de esquerda em oposição ao neoliberalismo precisa ser lançada em nome de uma Green Democratic Transformation (Transformação Democrática Verde), conectando a defesa do meio-ambiente com os múltiplos combates democráticos contra diferentes formas de desigualdade. O que está em jogo é a construção de uma vontade coletiva, um "povo" em que muitos combates, não apenas de natureza socioeconômica mas também de feministas, antirracistas, LGBTIQ+, encontrarão seu espaço.
Certamente tais exigências são muito heterogêneas e requerem alguma forma de articulação. Acredito que falar de uma Transformação Democrática Verde e contemplar a transição ecológica como um processo de aprofundamento da democracia poderia proporcionar este princípio articulador, pois é um projeto em torno do qual uma diversidade de exigências democráticas pode se cristalizar. É a força afetiva do imaginário democrático que tem guiado as lutas por igualdade e liberdade em nossas sociedades. Visualizar a transição ecológica necessária na forma de uma Transformação Democrática Verde poderia ativar o imaginário democrático e gerar poderosos afetos entre muitos grupos, fazendo com firmeza seu desejo de proteção voltar-se a uma direção igualitária.
O propósito de uma Transformação Democrática Verde é a proteção da sociedade e de suas condições materiais de existência de tal maneira que empodere as pessoas em vez de fazê-las se refugiar num nacionalismo defensivo ou numa aceitação passiva de soluções tecnológicas. É proteção para muitos, não para poucos, provendo justiça social e fomentando solidariedade.
Uma ofensiva contra-hegemônica populista de esquerda em oposição ao neoliberalismo precisa ser lançada em nome de uma Transformação Democrática Verde, conectando a defesa do meio-ambiente com os múltiplos combates democráticos contra diferentes formas de desigualdade
O Green New Deal (Novo Acordo Verde) defendido pela parlamentar norte-americana Alexandria Ocasio-Cortez e pelo movimento Sunrise (Nascer do sol) nos EUA é um bom exemplo de projeto nestes moldes, porque une a redução de emissões de gases de efeito estufa ao objetivo de corrigir problemas sociais como desigualdade e injustiça racial. Ele contém várias propostas importantes que, como a garantia universal pelo estado de ocupação paga na economia verde, são cruciais para assegurar a adesão de setores populares cujos empregos irão ser afetados. Na Grã-Bretanha, a Revolução Industrial Verde, que era uma peça central do programa do Partido Trabalhista de Jeremy Corbyn, também afirmava que a justiça social e econômica não podia estar separada da justiça ambiental. Defendia medidas para uma rápida descarbonização da economia, junto com investimento em empregos sustentáveis, bem pagos e sindicalizados. Em contraste com as muitas outras propostas verdes, esses dois projetos tornam necessária uma mudança sistêmica radical e reconhecem que uma verdadeira transição ecológica requer uma ruptura com o capitalismo financeiro.
Aqueles que advogam uma estratégia populista de esquerda são com frequência acusados pelos marxistas de negarem a existência da luta de classes, mas isto é baseado numa concepção errônea. Uma estratégia populista de esquerda reconhece que a sociedade é cruzada por antagonismos, alguns deles sendo de natureza socioeconômica. Podem ser chamados de antagonismos "de classes", desde que este termo não esteja limitado ao antagonismo entre o proletariado e a burguesia. Por mais que estejam próximos dos antagonismos socioeconômicos, existem outros antagonismos, localizados em diferentes relações sociais, dando origem a lutas contra outras formas de dominação. É por isto que, em 1985, em Hegemonia e Estratégia Socialista, argumentamos pela necessidade de articular as exigências da classe trabalhadora com aquelas dos movimentos sociais, propondo reformular o socialismo como "radicalização da democracia", entendida como a extensão dos ideais democráticos a uma vasta cadeia de relações sociais.
Hoje em dia, com a crise ecológica, o projeto de radicalizar a democracia adquiriu uma nova dimensão. Durante o século 20, o que estava no cerne do projeto socialista era a questão da desigualdade, e a luta por justiça social foi concebida em termos de uma repartição igualitária dos frutos do crescimento. As lutas dos novos movimentos sociais acrescentaram novos ângulos à questão de justiça social, mas seu foco estava na autonomia e liberdade e, com exceção de alguns movimentos ecológicos, eles não tinham fundamentalmente como alvo a natureza do crescimento.
Nas duas últimas décadas nós entramos numa nova fase com a emergência climática, na qual a luta por justiça social requer que se coloque em questão o modelo produtivista e extrativista. O crescimento deixou de ser considerado como uma fonte de proteção para se tornar um perigo às condições materiais de existência da sociedade. Não é mais possível contemplar um processo de radicalização da democracia que não inclua o fim de um modelo de crescimento que coloque em risco a existência da sociedade e cujos efeitos destrutivos são sentidos sobretudo pelos grupos mais vulneráveis.
Daí a importância de uma estratégia populista de esquerda que procure articular as múltiplas lutas contra a opressão e dominação em torno de uma Transformação Democrática Verde, com o fim de obter uma ruptura democrática com a ordem neoliberal. É dessa forma que a "luta de classes" se situa hoje.