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Nas produções cinematográficas ocidentais, o continente africano ainda é resumido a um país triste e repleto de guerras e miséria
Por Marcelo Hailer
Beasts of No Nation, produção cinematográfica recém-lançada pelo canal on demand Netflix, traz um relato contundente do jovem Agu (Abraham Atah) que, após ver pai e irmão assassinados durante conflito armado, é resgatado e treinado pela guerrilha de resistência. O longa é baseado no livro do escritor ugandense Uzodinma Iweala, que no Brasil foi lançado com o nome Feras sem nome. Porém, as narrativas, tanto do filme quanto do livro, são problemáticas ao não fazerem recortes histórico e geográfico. A África, um continente com 54 países, vira um país...
Se nos atentarmos apenas às questões estéticas e técnicas do filme, sim, de fato trata-se de uma produção impecável e com uma direção rigorosa de Cary Fukunaga (True Detective/primeira temporada), mas este não é o propósito destas linhas e sim discutirmos a abordagem cinematográfica a respeito da África pelo cinema ocidental nos últimos anos, fato que também tem relação direta com as abordagens a respeito da América Latina e Ásia. De culturas complexas a objetos exóticos e regiões dominadas pelo narcotráfico e guerras.
A África que ninguém ousa falar
O filósofo Frantz Fanon, em sua clássica obra Os Condenados da Terra, ao tratar da luta pela libertação nacional, especificamente sobre a guerrilha da Argélia, afirma que a independência é o primeiro passo da libertação, mas que, para que o país colonizado conquiste a sua independência total, levar-se-ão mais de cem anos. Ainda que de forma irônica, Fanon está discutindo outras formas de colonização que ainda serão perpetradas pelo antigo colono: dominação econômica e cultural.
Ora, o que é a narrativa ocidental cinematográfica sobre a África? De que maneira este continente foi retratado nos últimos dez anos? Guerra civil, miséria, exploração dos minérios e fome. O imaginário sobre África construído pelas produções culturais está alicerçado numa ideologia racista e escravocrata historicamente sustentada pelo Norte imperialista (Europa e EUA). Portugal, França e Inglaterra nunca aceitaram as libertações nacionais conquistadas pelas diplomacias e guerrilhas africanas. Em contrapartida, construíram uma narrativa de que o continente africano “nunca poderá dar certo apenas com o esforço dos africanos”. O que é uma farsa, mas também uma estratégia política de dominação.
A primeira mentira transformada em verdade pela narrativa colonizadora cultural é a do “continente violento e sem cultura”. Dos 54 países africanos, nem 1% conquistaram as suas independências com guerrilhas (Angola, Moçambique, Zimbábue – antiga Rodésia do Sul –, África do Sul e Argélia). A segunda mentira: “um continente chafurdado em guerras civis”. Nigéria e Uganda são os dois países que hoje travam guerras civis, porém, ainda assim não são guerras generalizadas por todo o território dos respectivos países. Transformar o continente africano como aquele que não pode dar certo é a vingança das potências colonizadoras.
Mas, ao contrário do que pretende a narrativa cultural predominante no Ocidente, hoje o continente africano vive inúmeros avanços políticos-sociais e econômicos. Ruanda, que, quando vivia sobre uma guerra civil era notícia cotidiana, hoje possui o parlamento com a maior participação feminina (64%); Moçambique, que também está entre os parlamentos com maior participação feminina (34%), legalizou o aborto e derrubou duas leis coloniais que davam margem à criminalização da homossexualidade. Há uma infinidade de possíveis narrativas sobre a África contemporânea, mas, ao Ocidente não interessa a África que prospera.
Esta ferramenta não é exclusiva para o continente africano, mas também utilizada para construir narrativas a respeito da América Latina. Para tanto, basta pegarmos outra produção do canal Netflix, a série Narcos, que conta a história do narcotraficante Pablo Escobar: novamente, a Colômbia é remetida ao tráfico de cocaína, uma pecha que os governos e população colombiana tentam desmontar desde o fim dos anos 1990. Nada contra a produção, mas é necessário atentar para o fato de que o Sul não se resume a tráfico, ditaduras e guerra civil e, se hoje há inúmeros problemas sociais – que estão a ser resolvidos – eles foram justamente criados por aqueles que atualmente insistem, ainda que seja nos produtos culturais, em reduzir o Sul à miséria, caudilhismo político e corrupção.
Por fim, não é à toa que o filme Que horas ela volta?, da diretora Anna Muylaert, está fazendo tanto sucesso, dentro e fora do país, pois trata justamente do Brasil que começa a se libertar dos últimos símbolos do escravagismo ainda tão fortes em nossa cultura. É o Brasil em transição. O mesmo vale para a África: as suas histórias de guerrilhas revolucionárias são riquíssimas e dariam ótimos enredos; o momento político-social que vários países africanos vivem, idem. Mas com essas histórias da África que ninguém ousa falar só teremos contato quando o cinema africano se fortalecer, assim como ocorre atualmente no Brasil.
PS: para quem tiver interesse em conhecer a África contemporânea, assista à série Nova África, da EBC. São duas temporadas, acompanhe nos links abaixo:
Nova África – link 1
Nova África link – link 2
(Foto de capa: Divulgação)