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Enquanto o público na “Cidade do Rock” vivenciava um espetáculo iluminado, o morro da Rocinha estava escuro, somente com luzes das casas acesas em um cenário típico de guerra.
Por Dennis de Oliveira*
O Rio de Janeiro viveu na última semana uma situação paradoxal. Enquanto o público na “Cidade do Rock”, montada onde outrora funcionou a Vila Olímpica dos Jogos Olímpicos de 2016, vivenciava um espetáculo de luzes, fumaças produzidas artificialmente e uma parafernália eletrônica em vários palcos; o morro da Rocinha estava escuro, somente com luzes das casas acesas em um cenário típico de guerra.
Ironia. O rock and roll, surgido da reinvenção de músicos negros que resolveram acelerar os acordes do blues e muitos deles tendo suas composições roubadas em troca de Cadillac’s e que consagrou artistas contestadores como Chub Checker (Let’s Twist Again), Chucky Berry (Johny B. Goodye, canção imortalizada pelo reggae de Peter Tosh), Rolling Stones, U2 (que denunciou o massacre das forças de segurança britânicas na Irlanda no Sunday, Blood Sunday), estava a poucos quilômetros da invasão de forças armadas nos morros da Rocinha, reprimindo violentamente pretas e pretos ou quase pretos de tão pobres, da mesma cor que o grande guitarrista Jimmy Hendrix que cantava de costas para públicos formados majoritariamente por brancos.
Na Cidade do Rock foi possível ouvir o espetáculo de Nile Rogers com a banda Chic e a sua jam session de dança convidando outros músicos e pessoas da organização para dançar no palco ao final. Mas que teve que se conformar em apresentar o Jota Quest, alavancada ao sucesso por uma música transformada em jingle (Fácil, de 1998) e com a grife impressa em latas de refrigerante Fanta.
Enquanto isto, cerca de 400 policiais e mais umas tantas centenas de militares cercaram a Rocinha e comunidades vizinhas e o tiroteio seguia, abafado, na Cidade do Rock, dos potentes equipamentos que amplificava o som das guitarras e dos outros instrumentos. O ritmo consagrado no Woodstock do “Faça amor e não faça guerra” se isolava privadamente em fronteiras bem protegidas, permitindo que se realizasse aquilo que o pensador Sigmund Freud considerava uma das fontes do mal estar humano: a incompatibilidade da liberdade e da segurança.
Pois a liberdade com segurança poderia vir na cidadela do rock com o símbolo do 30 seconds from the Mars, que lembra uma mimetização do prisma da capa do disco The Dark Side of the Moon, de Pink Floyd. Que cantou certa vez que We don’t need no education. De qualquer forma, as crianças ficaram livres da escola na Rocinha: por conta da ação policial as aulas foram suspensas para quase três mil crianças.
Enquanto isto, a repórter da Multishow inovava ao entrevistar os músicos ficando de costas para eles exibindo um sorriso sedutor.
Entre os clássicos, The Who levantou a plateia com o hit Who are you, que ficou conhecido por ser a abertura do enlatado americano CSI – Investigação Criminal. Na bateria, Zak Starkey, filho de Ringo Starr, da banda pop The Beatles, outro ícone da contracultura. Porém, Axl Rose não deu conta. O envelhecimento das suas cordas vocais denunciou que os tempos atuais são bem diferentes de quando estava no auge.
Tempos em que os festivais se transformaram em grandes happenings performáticos, conforme afirma Zygmunt Bauman, em Cultura nos tempos líquidos modernos. O que importa é vivenciar momentos ainda que estes cada vez mais se transformem em mimetizações de desejos. E por que Anitta não pode ser convidada para uma festa chamada “Rock in Rio” que será realizada daqui a pouco em Portugal? Afinal, a mensagem que fica é a sigla utilizada pelos jornais nas manchetes para Rock in Rio: RiR. Talvez seja a única possibilidade nestes momentos líquidos de que fala Bauman. Pena que isto não esteja ao alcance dos moradores da Rocinha.
* Dennis de Oliveira é professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP)
Este artigo foi publicado originalmente no blog do Celacc (Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação)
Foto: Commons