Os dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), que mostram um aumento geral na renda do Brasil mas uma estagnação na redução das desigualdades sociais, foi analisada por parte da mídia hegemônica como fruto do “baixo crescimento” do país nos últimos anos. Este mesmo discurso é repicado por apoiadores do governo federal com o mantra do desenvolvimentismo a qualquer custo, sem fazer uma reflexão crítica de que tipo de desenvolvimento se quer.
O lema da Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial – “Desenvolvimento sem racismo” – vai no mesmo diapasão. A busca desenfreada pelo desenvolvimento foi uma obsessão dos comunistas no início da Revolução Russa, principalmente pela experiência inédita de se tentar implantar um modelo socialista em uma nação quase que feudal, a Rússia. Depois das guerras mundiais, com a ampliação do socialismo para vários outros países da Europa oriental e a expansão da influência do paradigma socialista para outras nações do Terceiro Mundo, em especial em países recém-libertos da África e no Oriente Médio, transformou o programa socialista em um programa desenvolvimentista, como bem observa o pensador Erik Hobsbawn em “Era dos Extremos”. Em geral, a referência para estes programas desenvolvimentistas foi a experiência da NEP (Nova Política Econômica) dos bolcheviques russos que se aproximava de um “capitalismo de Estado”.
O grande problema a ser enfrentado na adaptação desta experiência nos tempos atuais é a mudança da natureza do capitalismo que se organiza cada vez mais em cadeias produtivas globais, gerando uma interdependência entre elas. Por isto, a pressão do grande capital – cada vez mais poderoso – sobre os Estados, em especial os dos países da periferia do capitalismo – mais fragilizados – é enorme. Diante disto, a grande pauta política dos tempos atuais não é desenvolvimentismo ou não simplesmente, mas qual é a postura que os Estados nacionais devem tomar diante desta pressão do grande capital.
O racismo entra aqui como uma ideologia que legitima a hierarquia destas cadeias produtivas, legitimando que algumas delas se organizem sob modos de produção altamente degradantes (como, por exemplo, a extração de tântalo, matéria prima de telas de cristal líquido, feita com escravização de crianças na República Democrática do Congo) e outras com alta sofisticação tecnológica (como os laboratórios de pesquisa científica das mesmas empresas que produzem as telas de cristal líquido que empregam mão de obra altamente qualificada, em geral nos países europeus e nos EUA).
Desenvolvimentismo pode significar apenas e tão somente organizar a nação de forma que atenda as demandas deste grande capital global. Isto pode até trazer recursos novos para o país, mas à custa de manutenção de rígidas hierarquias. É esta contradição que se vê, por exemplo, na opção do governo em organizar grandes eventos como a Copa do Mundo de Futebol em 2014 e os Jogos Olímpicos, de 2016, no Rio de Janeiro, procurando atender todas as exigências das federações internacionais que, em última instância, representam grandes empresas promotoras e patrocinadoras destes eventos. O processo de faxina étnica que está ocorrendo nas grandes metrópoles, com as periferias vivendo verdadeiros estados de sítio (proibições de reuniões e de determinadas expressões culturais, toques de recolher, ações policiais sem qualquer respaldo judicial, invasões de domicílios, etc) tem como objetivo “organizar” os espaços urbanos de forma adequada a receber estes eventos.
Esta é a discussão de fundo, radical (no sentido de se pegar pela raiz) que deve ser feita pelo movimento anti-racista na temática do desenvolvimento. Não se trata de apenas e tão somente reivindicar políticas públicas e/ou compensatórias dentro de uma agenda desenvolvimentista já pré-definida (como, por exemplo, organizar “cursos de capacitação” de afrodescendentes para poderem trabalhar na Copa, projeto que vi circular recentemente). Não que isto não tenha a sua importância, mas a luta anti-racista não pode ser periférica à agenda geral da política e da economia. Tem que ocupar o centro e, para tanto, é preciso refletir na sua radicalidade qual projeto econômico interessa à população afrodescendente brasileira.