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nos filmes e seriados, na história do mundo, na sociedade a nossa volta, só o que vemos são guerras, intrigas e traições. será possível existir uma sociedade pacífica e livre?
talvez, para isso ser possível – doa a quem doer – o caminho seja uma sociedade de mulheres no topo da hierarquia social.
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a diretora holandesa marleen gorris fez, em 1995, um filme considerado hoje um clássico feminista: a excêntrica família de antônia (original: antonia). o filme é uma simples história de mulheres: a família de antônia. mas o roteiro envolve também a história de sua comunidade, uma pequena vila rural holandesa, que se [re]forma no matriarcarcado, com liberdade e sem a repressão da religião e, mais importante, com uma prática de hospitalidade e não-violência.
parece utopia, não é?
lembrei deste filme recentemente porque vi um pequeno documentário que me fez me emocionar: a utopia, afinal, não estava tão distante assim. uma sociedade [re]formada no matriarcado, com liberdade e sem a repressão da religião e, mais importante, com uma prática de hospitalidade e não-violência, existe.
existe e fica em minas gerais.
a história real de delina fernandes e sua comunidade noiva do cordeiro é ainda mais impressionante que a história ficcional de antônia e sua anônima vila holandesa.
o roteiro real começa com uma mulher fazendo algo inaceitável: se divorciar. continua com repressão religiosa, com preconceito institucionalizado e com mulheres que foram consideradas "mal vistas”. apesar de tantos pesares, as mulheres dessa comunidade resolveram se unir. se organizaram em uma sociedade auto-sustentável. acolheram outras famílias.
(não é uma sociedade contra ou sem homens. eles estão lá. por conta das circunstâncias, os homens passaram muito mais tempo longe da comunidade, trabalhando na cidade, e as mulheres se tornaram protagonistas.)
uma pequena comunidade em minas gerais mostra que quando as mulheres se unem, uma vida comunitária com liberdade para cada indivíduo é possível. quem quer casar, casa. quem quer ter filho, tem filho. quem gosta de cozinhar, cozinha. cada pessoa faz sua parte, e assim, unidas, elas conseguem evitar a opressão (que até hoje só vem de fora).
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em antonia, durante uma cena, a personagem principal conversa com sua filha:
danielle (filha de antonia): mamãe, eu quero ter um filho.
antonia: vai querer um marido junto também?
danielle: não.
conheço muitas mães solteiras – que fizeram isso por opção ou por força das circunstâncias – e é incrível como essa negação de um marido ou parceiro é chocante e revolucionária. com ou sem filho, uma mulher que decide não ter um macho ao seu lado é mal vista. no campo, principalmente, mas até mesmo na minha tribo urbana e supostamente moderninha e liberada. ver os homens como indivíduos, e não como necessidade, faz parte da criação de um protagonismo transformador.
e, de novo, a ficção imita a realidade. durante um documentário sobre o empoderamento econômico proporcionado pelo bolsa-família no interior do piauí, a pequena serena, de 8 anos, é entrevistada:
"Serena, uma das filhas de Luzia, tem 8 anos e está na terceira série. Ela ajuda a arrumar a casa, já sabe cozinhar, ajuda na roça. Mas não perde suas aulas. Logo depois de cantar o alfabeto e os números, diz que quer ser “advogada e médica”. Quando perguntada sobre casamento, a pequena afirma, com a mão na cintura: “eu não vou casar, vou ser sol-tei-ra…”, diz, demorando nas sílabas."
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não consigo falar de união e empoderamento entre mulheres sem me recordar da estrutura social de um de nossos primos mais próximos na escala evolutiva: os bonobos.
conhecidos como os “hippies” da floresta, eles são um dos poucos símios que possuem uma organização matriarcal. as fêmeas, embora menores e mais fracas fisicamente que os machos, ficam em uma posição de poder através das alianças com outras fêmeas. isso resulta em uma sociedade pacífica e com muito sexo. sim, literalmente “paz e amor”.
existem teorias que acreditam que as sociedades humanas caçadoras-coletoras, antes da revolução neolítica, também se comportavam desta forma – considerando semelhanças evolutivas tanto biológicas quanto comportamentais. essas sociedades seriam muito mais pacíficas e bem menos violentas entre seus indivíduos ou com indivíduos de outros grupos do que as sociedades patriarcais que possivelmente co-existiram e existem de forma quase unânime hoje.
aqui, na minha sociedade urbana, brasileira e patriarcal, as mulheres são ensinadas a se verem como inimigas. com isso, a estrutura que nos oprime continua firme e forte. esta estrutura depende de mulheres que se chamam de “barangas” ou “mal comidas”. que ofendem umas às outras, ao invés de se unirem. se queremos liberdade para homens e mulheres, é preciso olhar para o exemplo de noiva de cordeiro e iniciar um novo ciclo. essas mulheres são prova de que é possível.
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não deixe de ver o documentário “noivas do cordeiro”, sobre essa linda comunidade: https://www.youtube.com/watch?v=cVmj1hORxso
veja também o documentário “severinas: as novas mulheres do sertão”: http://apublica.org/2013/08/severinas-novas-mulheres-sertao/
e o filme “antonia”, completo no youtube (com legendas em inglês ou espanhol): https://www.youtube.com/watch?v=XJvR-IBPQr0
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mais referências:
• página da comunidade noiva do cordeiro no fb: https://www.facebook.com/noivadocordeirocomunidaderural
• a história da comunidade, no site: http://www.noivadocordeiro.com.br/villa/A_Noiva.html
• artigo: "liberdade, dinheiro e autonomia - o caso da bolsa família", de walquiria domingues lea?o rego e alessandro pinzani.
• livros: "sex at dawn” de christopher ryan e cacilda jethá (sobre a sexualidade humana sob o ponto de vista evolutivo e em relação aos nossos primos símios mais próximos). “our inner ape” de frans de waal (mais um livro que discute diferenças e semelhanças entre nós e nossos primos símios mais próximos, sem tanto foco na sexualidade.)
imagem em destaque: cena do filme antonia.