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por Cesar Castanha
Hatut Zeraze. Eu vi esse nome pela primeira vez lendo o volume de Christopher Priest da revista do Pantera Negra. Esse é o título dado à polícia secreta de Wakanda (o país que é central na composição do universo ficcional do personagem), aos seus espiões e aos seus exilados. Priest se utiliza dos Hatut Zeraze, que se traduziria em algo como “cães de guerra”, para compor, no fim dos anos 1990, uma narrativa de espionagem policial saudosa pelo neonoir setentista e pelo blaxploitation. Assim como outros elementos e personagens desse universo consolidados pelo volume de Priest — as Dora Milaje, por exemplo, guarda real de Wakanda —, os ditos cães de guerra se mantiveram como parte integrante das histórias do Pantera Negra em volumes seguintes. Mas em nenhuma delas, nem mesmo nas de Priest, percebe-se esses expatriados com o mesmo carinho de Ryan Coogler, que escreve e dirige o primeiro filme solo do herói.
Há uma ambiguidade presente já na sequência de animação que abre o filme, apresentando a mitologia de Wakanda. Podemos reconhecer, pelas vozes e pelo modo como se dirigem um ao outro, que a narração em off que apresenta a origem do país se refere a um diálogo entre o rei T’Chaka e seu filho, ainda criança, príncipe T’Challa. Mas antes que possamos ver qualquer um desses dois personagens em cena, a sequência seguinte nos apresenta outro pai e filho, N’Jobu, irmão do rei e um Hatut Zeraze ele mesmo, e N’Jadaka, futuramente Erik Killmonger. Quem, então, narra Wakanda, um país imaginado? Um rei para seu herdeiro ou o exilado para um filho que fora mantido alienado de sua terra? Um estadista para os jovens habitantes desse lugar ou o traidor para aqueles que foram deixados para trás?
A ambiguidade é sustentada pelo desenvolvimento posterior desses personagens, pelo ressentimento de Killmonger (Michael B. Jordan) e pela culpa de T’Challa (Chadwick Boseman), consagrado rei depois da morte de seu pai. Mas o fundamento desse antagonismo, o princípio da construção mesma dos personagens, está no reconhecimento desses Hatut Zeraze, dos que foram postos fora de sua terra, dos que nunca poderão voltar, porque aquele espaço, de algum modo, já não os pertence. Coogler procura a visualidade mesma desse exílio, como no olhar da criança para a espaçonave que a abandona ou no estar diante de um por do sol de que se ouviu menção do encanto — mas que se mostra, enfim, fatalmente inalcançável.
Wakanda, como lar fictício, só poderia ser criado a partir do olhar dos que estão fora. Talvez por isso, a maior parte das histórias do Pantera Negra lida com o afastamento do rei T’Challa, com a problemática de seu rompimento com a política isolacionista do país e com sua aproximação ao ocidente. As aventuras do herói em Wakanda são, geralmente, narrativas de retorno a Wakanda (como é o caso do próprio filme). Coogler parece ter muito claro esse entendimento do lugar como distante porque imaginado e imaginado porque distante. O país não é a Ágrabah da versão da Disney para Aladdin (1992), no sentido de que não se trata meramente de misturar os estereótipos de uma série de culturas locais para criar um único representativo de todas elas. Wakanda, como recriada por Coogler, não é tanto uma representação da África quanto de um desejo de retorno ao continente e da impossibilidade desse retorno.
Coogler se alia, por esse caminho, à excelente retomada do personagem nos quadrinhos conduzida pelo escritor Ta-Nehisi Coates desde 2016. Coates, como Coogler, reconhece Wakanda e toda a mitologia que cerca esse espaço como uma construção ocidental. Há certa ironia em jogo no modo como o autor reapresenta a história do país como uma de várias visões divergentes da ancestralidade africana em disputa. É ele quem introduz, por exemplo, os orixás ao universo do herói, como personagens esquecidos por uma Wakanda ocidentalizada.
Ora, reconhecer o país mitológico desse modo não é apenas uma consideração pelos personagens ou pelo próprio lugar dos dois autores estadunidenses, mas também uma constatação da indústria em que foi criado e onde está inserido. É óbvio que Wakanda, tanto na leitura de Coates quanto na de Coogler, é pautada pelos padrões criativos da Marvel e Disney. O universo do Pantera Negra não existe fora desse contexto industrial, como algum tipo de criação exclusiva dos que são vistos como seus autores (Stan Lee, Priest, Coates ou Coogler).
O que é levado adiante nessas leituras mais recentes é a exposição do personagem e dos elementos que o cercam como artifícios trabalhados por esses outros, sejam eles a figura ficcional do exilado, a nostalgia dos escritores ou o agenciamento de indústrias ocidentais. Estabelecida como uma declaração dos que estão fora, Wakanda se fortalece como obra fantástica. E é preciso que ela funcione sempre dentro dessa estrutura ficcional — que se observe essa África intocada pela colonização como um espaço imaginado dentro do contexto mesmo da colonização — para que se opere politicamente o olhar dos que miram a distância.