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por Cesar Castanha
Quando o gênero do filme de super-herói se consolidou como um dos mais lucrativos em Hollywood, adaptações de personagens da Marvel e DC nos cinemas começaram a ser cada vez mais frequentes. A Fox, por exemplo, está produzindo agora o décimo filme da franquia X-men; e ainda este ano estreia Homem-Aranha: De Volta ao Lar, a terceira reinterpretação cinematográfica do personagem nos últimos 15 anos — e quinto filme do cabeça de teia nesse mesmo tempo. Até chegar aos três grandes universos cinematográficos do gênero — Marvel, DC e X-men/Fox —, a indústria se permitiu experimentar com as adaptações, recriar as histórias e reformular personagens. Ainda assim, desde o fracasso de Mulher-Gato (dir. Pitof, 2004) e Elektra (dir. Rob Bowman, 2005), as personagens femininas dos quadrinhos — como Viúva Negra, Vespa e Feiticeira Escarlate — foram restritas a um papel coadjuvante em filmes de super-heróis homens.
Eu menciono esse estado das coisas no gênero para que se possa ter alguma dimensão da expectativa por Mulher-Maravilha (dir. Patty Jenkins, 2017). Dada a importância da personagem nos quadrinhos, onde se originou em 1941, é surpreendente que a sua única referência no audiovisual tenha sido, até o filme que estreia amanhã (1º/06), uma série de televisão que durou de 1975 a 1979. Então, Patty Jenkins e Gal Gadot estão praticamente apresentando a personagem a maior parte do público, e elas fazem isso quando o gênero está totalmente consolidado, afastando de vista a possibilidade de reformular em um estalar de dedos uma história mal-recebida.
A dupla, no entanto, não apenas dá conta dessa responsabilidade como entrega um dos “filmes de origem” mais interessantes do gênero e uma bela leitura da personagem. Recriações da Mulher-Maravilha nos quadrinhos (como a dos Novos 52 e o mais atual Rebirth) frequentemente recorrem a uma complexidade da mitologia grega, envolvendo Diana nos conflitos e ciúmes dos deuses. Jenkins, ao contrário, propõe um universo mitológico muito simples e coerente: as amazonas, guerreiras criadas para combater o próprio deus da guerra, são recompensadas com a ilha de Temiscira, onde vivem pacificamente. Diana (Gal Gadot), filha de Hipólita (Connie Nielsen), é esculpida no barro da ilha e, sendo a única criança do lugar, não conhece outra coisa que não a paz de Temiscira. Quando confrontada com um mundo onde não há paz, Diana percebe como sua responsabilidade cumprir o papel que suas irmãs e mãe um dia cumpriram e segue em uma jornada ao mundo de homens.
O modo como esse contexto da personagem se encerra a situa de modo muito interessante entre as amazonas. Diana é a filha privilegiada que goza das conquistas duramente obtidas por uma geração que a antecede. Das batalhas travadas contra a opressão, Diana só conhece histórias — e pode até, a partir dessas histórias, tomar um posicionamento, mas está fadada a não entender totalmente o lado que escolheu, a não conhecer a sua dor. O que move Diana é primeiro a possibilidade do fim de seu privilégio e, depois, o vislumbre de um mundo que nunca conheceu esse privilégio.
Se a presença da personagem Diana em Mulher-Maravilha é tão forte e sua jornada parece, a mim, tão clara, isso se deve também ao excelente trabalho de Gal Gadot. A atriz constrói a personagem a partir de cruzamentos entre a sua ingenuidade e sua indignação, colocando os dois como impulso para uma atitude combativa e contestadora. Não é à toa que o filme começa com Diana no presente, contemplando uma foto do seu passado e lembranças do seu envolvimento na Primeira Guerra Mundial. O distanciamento com que Diana contempla o seu passado é o distanciamento de uma personagem que já mal se reconhece na foto que contempla. Ao fim do filme, quando vemos mais uma vez a Mulher-Maravilha de nosso tempo, pode-se perceber que a distância entre as duas Dianas permanece. Há outras tantas jornadas, outras tantas batalhas entre as duas. E essa distinção é também parte de um trabalho muito sofisticado de Gadot, que deve se tornar para a Mulher-Maravilha o que Christopher Reeve se tornou para o Super-Homem — uma referência corporizada da personagem.
Talvez ainda nos mostrem o que mais separa a princesa Diana da Mulher-Maravilha. Gadot, Jenkins e o filme, no entanto, já cumprem aqui com a responsabilidade de apresentá-las em sua complexidade. Torço para que os seguidos desandos das outras adaptações da DC não comprometam a continuidade desta personagem. Acredito, ainda assim, que para além dos planos do estúdio este filme pode ressoar longamente dentro do gênero. Evito fazer previsões sobre o futuro de filmes, mas não consigo evitar uma ansiedade pela recepção deste quando tantas pessoas terão com ele o primeiro contato com a personagem e que — entre essas tantas — algumas a terão como uma referência e este filme como um afeto permanente. Diana foi ao mundo; vejamos agora o que este fará dela.