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por Cesar Castanha
A série animada Os Flintstones pode ser vista como um produto de entretenimento americano bem típico da cultura da Guerra Fria, e da narrativa que o país então construía sobre si mesmo. A família, a cultura e a ideologia americanas edificadas, expostas como atemporais, como a sociedade ideal que a América sempre representou e para sempre representará (e aí entra outra família, a dos Jetsons). Afinal, se o modo de vida americano é tão perfeito que cabe a qualquer época, por que não caberia ao presente?
A escolha de adaptar a animação em uma nova série de quadrinhos pela DC Comics poderia ter soado, hoje, problemática. Diante do discurso de Donald Trump e seus apoiadores, seria adequado se voltar mais uma vez ao ideal da família nuclear americana? Não teria essa narrativa se tornado completamente anacrônica? E a surpresa dessa nova HQ, seu punch line, é entender que “sim”, que esse ideal é por si só totalmente absurdo e anacrônico.
Os novos Flintstones zombam da impossibilidade de se fazer cumprir o slogan de Trump. Afinal, o “faça a América grande de novo” suscita uma pergunta básica: a que momento o “de novo” se refere? Pintando a cultura americana em uma recriada “Idade da Pedra”, esse pedido pela grandeza “de novo” se vê ridicularizado. E então Os Flintstones, antes uma reafirmação da cultura americana com eventual comentário satírico, torna-se um dos mais inteligentes entre os vários produtos da cultura liberal a se voltarem contra o atual presidente americano.
A cada edição — seja ao ironizar com a performance da força nos processos democráticos ou ao reimaginar o surgimento da instituição do casamento — a HQ parece responder a esse discurso que insiste em lançar um olhar saudoso para o passado, apontando-o como delirante. E a disposição ainda de se fazer essa crítica usando um produto tão carregado de afeto quanto Os Flintstones atinge o ponto para uma excelente sátira. Assim, ri-se diante do discurso reacionário, primeiro colocando ele no mesmo nível de ridículo que uma série de animação infantil, e depois esmiuçando ponto a ponto cada uma das contradições desse discurso.
Recriando, mais uma vez, a cultura de classe média americana dentro do que imaginamos como a Idade da Pedra, Os Flintstones já não funciona mais neste momento apenas como uma sátira da sociedade americana, mas também como uma sátira específica do próprio discurso de Trump. Uma das piadas mais memoráveis no desenho original, a ideia de animais domésticos cumprindo funções que cabem aos eletrônicos modernos — como um elefante que aspira pó —, agora se faz presente nos quadrinhos como que ridicularizando a manifestação do sentimento nostálgico por parte de pessoas irresponsavelmente consumistas.
E assim cada incoerência dessa nostalgia reacionária é confrontada com fina ironia e uma excelente noção de humor, trazendo à tona alguns questionamentos bem essenciais. Por exemplo: que lugar ocuparão as minorias nesse futuro que deve se parecer com o passado em que foram violentamente marginalizadas? E, talvez a mais importante: que valores são colocados em evidência nesse discurso nostálgico-reacionário? Por quais valores operam uma sociedade que mantém seu olhar saudoso fixo no passado?
Em uma sociedade e em uma cultura que pauta suas narrativas no saudosismo patriota a-histórico, esse momento é uma oportunidade pra enfrentar a urgência dessas questões e pôr em cheque finalmente a validade do saudosismo como um caminho para se contar histórias. É isso que os novos Flintstones oferece, e é a isso que devemos nos agarrar.