O azul de "Boas Maneiras", por Alan Campos

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Do encanto com os créditos de abertura de "Alice no País das Maravilhas", visto religiosamente sempre que exibido nas tardes de sábado pelo SBT, veio a paixão pelo cinema como experiência estética, transformadora e expressão de uma ideia, uma história ou do próprio experimento. Por amar o cinema para além dos padrões de qualidade impostos a ele pela mídia, por outras instituições e até por uma crítica datada, veio o meu amor por conversar sobre cinema, aderi-lo, defendê-lo, apropriar-me dele. O Milos Morpha é uma conversa sobre cinema. Aqui, o texto nunca é certo e definitivo. O cinema não é uma fórmula para que cada cineasta se aproxime da solução mais correta, é um conjunto de experiências artísticas que já dura mais de 100 anos, é dessa forma que criticamente percebemos e experimentamos o cinema no Milos Morpha.
É notável a presença marcante da cor azul na primeira parte de As Boas Maneiras (dir. Juliana Rojas e Marco Dutra, 2017). Azul bebê, azul quarto de criança, azul cor de meias e roupas infantis, azul calmante. Entretanto, tal azul muitas vezes surge em tons mais escuros. Azul marinho, azul enquanto uma noite fria, azul quase preto, azul soturno. Extrapolando sentidos narrativos explícitos, a dimensão da cor que a dupla de realizadores confere ao filme adquire proporções quase tácteis: a cor da calça jeans da protagonista Clara (Izabél Zuaa, atuação magistral) se funde com a cor da parede do quarto do futuro bebê de Ana (Marjorie Estiano), ou como quando Ana sonâmbula vagueia sem rumo por sua casa e pelos corredores estreitos de seu prédio. O azul artificialmente claro e relaxante dos céus diurnos caminha ao lado de um azul noturno, nublado e de lua cheia. A cor azul é uma forma de apreender As Boas Maneiras. Sua aparição – seja ela de maneira artificial ou realisticamente – marca as imagens do filme em um tom convidativo que passa a adquirir uma vida própria por escapar tanto de significados definitivos, como de fetiches estéticos batidos. O azul é uma política aqui, uma aparição reconfortante, uma possibilidade para o desconhecido. A narrativa se deixa ser levada pelo estranho e pela ternura. A profusão de elementos do gênero horror se funde com situações cômicas e números musicais sob um pano de fundo relativo ao choque social provocado por dois lugares de mundo situados na presença de Clara e Ana. A primeira – uma mulher com dificuldades financeiras – aceita trabalhar no apartamento luxuoso da segunda, uma mulher rica e solitária que está grávida. Com o desenrolar do filme, Ana passa a apresentar um comportamento cada vez mais estranho e ameaçador. As Boas Maneiras é – como seu pôster já nos indica – um aperto de mãos de lugares opostos. Aqui, o sereno inexiste sem um traço aterrorizante, realidades diluídas em um só corpo. A canção de ninar sob a ameaça do monstro do armário. Marcas expressivas que, ao separadas umas das outras se apresentam como diferentes, mas que o filme tende a apagar os limites que as distinguem. O riso seria impossível sem o suspense que o segue, assim como o azul bebê depende do azul marinho. A trilha sonora atiça a curiosidade do espectador para um mundo onde as coisas nunca se tornam estáveis. Uma narrativa que consegue fazer fruir uma sensualidade física e misteriosa – que não se limita a crescente tensão sexual entre as personagens – com a sensação relaxante de um sono leve e sem pesadelos. As Boas Maneiras me pega por sua familiaridade com lendas urbanas, histórias que só parecem fazer sentido quando se é criança, quando a narrativa provoca um misto de fascinação e amedrontamento. Suas excentricidades e familiaridades o tornam um filme de sorriso torto, entre o prazer irresistível do mistério e sua consequente busca pelo mágico, pelo irreal, pela fantasia. O maior mérito de As Boas Maneiras é se aproximar de tantos lugares de maneira empática. Não se trata de uma obra que simplesmente se joga em direção a suas referências por narcisismo estético, tais elementos existem para dar conta do crescente fascínio que Clara vai nutrindo por Ana.  Se à primeira vista existe o choque de condições sociais divergentes entre as duas, o filme passa por eliminar barreiras através por fazer um movimento de despir Ana de seus estereótipos, o filme a livra de suas afetações sociais com o passar de sua gravidez para ir em direção ao uma condição mais primitiva de futura mãe, que está passando por uma gestação conturbada. Ou seja, o filme caminha a uma direção de coisas cada vez mais emaranhadas por um gesto empático com a situação de Ana. Filme melancólico, filme sensual, filme monstruoso, filme de empatia. Em uma virada clara de roteiro, todos esses filmes se tornam o filme amarrado, o que me pareceu um pouco decepcionante diante da primeira parte. Ainda que não se torne um filme desinteressante, apenas um pouco extensivo e deveras menos estranho. A dimensão dessa segunda parte é bastante dependente da expectativa para uma resolução, para um ponto final. Entretanto, emana da primeira parte a incansável empatia com que o filme se refere aos seus protagonistas. E é nesse aspecto que o filme conclui no gesto expressivo de seus protagonistas: um gesto carregado de autoafirmação e de resistência diante de um mundo nada estranho e mágico.
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