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por Cesar Castanha
Estou no cinema, em uma das sessões da mostra competitiva de curtas brasileiros do X Janela Internacional de Cinema do Recife. O programa não está especialmente bom, e o quinto e último filme começa. Vemos uma série de planos que vão de uma vizinhança em um bairro de periferia se fechando até objetos de uma das casas desse bairro. Nesse momento, antes de aparecer qualquer personagem, meu companheiro, Pedro, agarra-se a meu braço e me pergunta, cheio de expectativa: “É Zezé?”.
Pedro se refere à atriz Maria José Novais Oliveira, mãe do cineasta André Novais Oliveira e personagem de dois de seus filmes, Ela volta na quinta (2014) e Quintal (2015). Não era Zezé, mas sim Roseli Isabel da Silva, protagonista do filme Deus (dir. Vinícius Silva, 2016), reconhecido pelo júri com o prêmio de melhor filme da mostra. Deus acompanha o cotidiano de uma mãe solteira negra da cidade de São Paulo e sua relação com o filho, Breno, um garoto de cerca de 7 anos.
A expectativa e o engano que se criaram a partir dos planos iniciais não é por nada. Vinícius Silva acompanha aqui o interesse por um certo grupo de personagens e, mais importante, por um certo modo de filmar esses personagens. Silva procura pequenos momentos dessa relação entre mãe e filho, entre mulher e sociedade. Mas se engaja nesses momentos como um convidado da casa, alguém a quem se conta daquela dinâmica e que, por sua vez, conta-nos dela. Há uma aproximação entre o diretor e a sua cena, eu diria. Ou, como o crítico Victor Guimarães entende o gesto no seu texto sobre Baronesa (dir. Juliana Antunes, 2017), um convite para dançar.
Acredito que a confusão entre os filmes seja motivado por uma dupla semelhança. A primeira, entre as imagens iniciais de Deus e a dos filmes de Oliveira, uma semelhança de mise-en-scènes. A segunda entre os filmes e um espaço fora dos filmes, algo de reconhecível que não está apenas nos objetos em si — algo que Pedro poderia reconhecer de sua casa e de sua vizinhança — mas na postura diante desses objetos, de um olhar que se coloca presente, entre os personagens que filma.
Essa postura diante do que se filma poderia ser chamada de realismo. Mas a expressão — apesar da praticidade com que se faz entendível — soa-me enganosa, inadequada a filmes que zombam de uma expectativa do real (como o próprio Quintal) e pouco interessante para se pensar a especificidade desses filmes. Como podemos, por exemplo, diferenciar essa postura de um realismo agressivo, um naturalismo caricato, que entende filmar o cotidiano do outro como uma performance do “não olhar”, uma performance de ausência que se dá tanto por uma tentativa de interferência mínima quanto por outra de contemplar tudo desse outro, não permitir que nada lhe escape?
O olhar nos filmes de Silva e Oliveira se coloca presente, ele se faz visto diante do que vê. Ele é um contraplano subentendido. Desvio-me agora para o exemplo de Baronesa. O filme de Antunes acompanha o cotidiano de três personagens em Vila Mariquinhas, na Zona Norte de Belo Horizonte. Apesar de ser um documentário (ao menos o filme tem circulado em festivais voltados para o gênero) que evita artifícios como a entrevista ou a presença em câmera da diretora, o filme não passa por uma tentativa de esconder o olhar. Pelo contrário: as suas construções de cena são muito evidentes, os planos e a montagem do filme são perceptíveis como parte de uma meticulosa e complexa concepção estética.
Acho que o texto de Victor Guimarães para o filme é muito feliz em observar as nuances do trabalho de Antunes, principalmente no que se refere à relação que o filme mantém com seus personagens. Mas discordo do crítico quando ele entende a cena do plano que se desmonta ao barulho de tiros como uma interferência do real. Aquele momento me pareceu, ao contrário, uma reafirmação do estatuto do filme como filme, como um objeto de materialidade própria, que é incapaz de alcançar essa outra realidade (o espaço do outro que filma) como um simples reflexo.
Acredito que Baronesa tome uma outra consideração da realidade, uma em que ela não aparece como algo disponível à total apreensão. Foi isso também que me conquistou em Era uma vez Brasília (dir. Adirley Queirós, 2017), um filme que não foi recebido com a mesma aparente unanimidade de Branco Sai, Preto Fica (2014), o anterior do diretor. Admiro a constante recusa de Queirós contra realizar um documentário, apesar de suas muito evidentes afiliações formais ao gênero. Se o cineasta se relaciona com a ambiguidade da fronteira entre gêneros primeiro como uma provocação, em A cidade é uma só (2011), e depois a partir de uma ironia crítica, em Branco sai, preto fica, ele chega a um ponto com Era uma vez Brasília em que a fronteira não precisa mais aparecer para ser recusada.
A realidade, em Antunes e Queirós, é tratada como um espaço para a encenação de olhares. A sua reivindicação realista, entendo, vem de encenar esse olhar no espaço do outro, compartilhar da materialidade de um mesmo espaço. Evidentemente, este não é o único caminho para uma estética realista e não quero de modo algum sugerir que há nas particularidades desses filmes uma exclusividade ética inalcançada por outras abordagens, tanto como não posso implicar que filmes como Baronesa e Era uma vez Brasília estão imunes a uma problematização. Uma consideração política dessa encenação, afinal, deve reconhecer também o cinema como uma indústria que sustenta determinados privilégios na produção e distribuição desses filmes.
Toca-me, simplesmente, essa encenação de um estar-junto que vejo tomar força no cinema brasileiro contemporâneo. Vejo esses filme pôr em cena as contradições do gesto de filmar, as limitações inerentes à construção de um olhar. A distância posta, reconhecida e respeitada, de filmes como Deus e Arábia (dir. Affonso Uchoa e João Dumans, 2017) pede em si mesma uma revisão das políticas de produção e distribuição de cinema ao reconhecer que filmar o outro, em qualquer formato, iniciativa e postura que se tome diante desse outro, ainda é filmar o outro. Acho que propostas como a que vemos no curta-metragem Filme de rua (dir. Joanna Lacerda, Paula Kimo, Zi Reis, Ed Marte, Guilherme Fernandes, Daniel Carneiro, 2017), que é filmado, performado e editado por adolescentes de Belo Horizonte, é um posicionamento interessante e legítimo diante do cinema. Mas me pergunto se em algum momento não se disfarça que o filme foi concebido e proposto ainda por pessoas que gozam dos usais privilégios nos processos de fomentação e financiamento.
Vejo também nesse reconhecimento de uma distância um caminho para evitar um tom de conhecimento e autoridade diante da produção estética do outro. O que me incomoda em um filme como Terremoto santo (dir. Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, 2017), uma coletânea de videoclipes gospel, não é o kistch em si, ou o exagero visual como proposta estética, mas uma certeza do kistch que não abre espaço para que outros afetos atravessem aquelas imagens. Se filmar o outro é um convite para dançar, talvez seja necessário nos perguntarmos quem faz o convite. Isso não para impedir a dança, mas para melhor perceber como ela é conduzida.
Lembro agora de algumas imagens deixadas por esses filmes, de que, no fim das contas, falei tão pouco: Andreia construindo sozinha a sua casa em um novo espaço ao final de Baronesa, o garoto que canta a própria música em Filme de rua e o som inconstante e localizado dos aplausos ao final da sessão de Era uma vez Brasília. Talvez o cinema seja uma dança de fato, mas uma, suponho, em que ao fim da música os pares se encarem no silêncio, incertos — cada um a seu modo — dos passos que acabaram de tomar.