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Filme do renomado diretor Matin Scorcese traz cenários de disputas de gangues nos EUA na época da abolição da escravidão.
Por Lucas Procópio Caetano
Para além da notória queda de braço entre o diretor Martin Scorsese e os produtores da Weinstein Company acerca do corte final, ou ainda a catastrófica montagem de gosto duvidoso de Thelma Schoonmaker, Gangues de Nova York (Gangs of New York, EUA, 2002) ainda se faz um retrato assustador de um passado que compartilha semelhanças demais com o presente. Lançado no ano seguinte aos atentados às Torres Gêmeas, o filme romantiza as conflituosas relações entre as gangues que dominavam a cidade do título em meados do século XIX, época da Guerra de Secessão.
Na trama, inspirada pelos eventos documentados no livro As Gangues de Nova York - Uma história informal do submundo de Nova York, escrito pelo jornalista Herber Asburry e publicado em 1928, um jovem (Leonardo DiCaprio) retorna às favelas das Cinco Pontas (atual centro de Manhattan) depois de 16 anos de exílio. Sua chegada coincide com as comemorações da abolição da escravatura americana, em 1863, e o intuito de seu regresso é vingar a morte de seu pai, “Padre” Vallon (Liam Neeson). Líder da gangue Coelhos Mortos, formada por imigrants irlandeses majoritariamente católicos, Vallon foi assassinado pelo açougueiro Bill “The Butcher” (Daniel Day Lewis), chefe da gangue rival Bowery Boys, que se opunha aos imigrantes e se autoproclamava como uma organização de “nativos”. Seus membros eram imigrantes que haviam pisado em solo americano há mais tempo ou ainda filhos e netos dos ex-colonos ingleses responsáveis pela independência norte-americana em 1776. Além dos irlandeses, também rejeitavam negros e indígenas, incitando a xenofobia e a segregação racial.
O plano do jovem Vallon é se infiltrar nos Bowery Boys e assim ter posição privilegiada para tirar a vida do algoz de seu pai. Ele adota o nome de Amsterdam e aos poucos ganha a confiança dos “nativos”. Contudo, suas motivações vão além da mera vingança. Conforme se aproxima de seus inimigos, Amsterdam se envolve romanticamente com Jenny Everdeane (Cameron Diaz), que ganha a vida realizando pequenos furtos sob a proteção do influente Bill, que exerce sobre ela uma relação de poder tão paternal quanto sexual.
É interessante que tanto o roteiro, escrito a seis mãos, quanto a direção de Scorsese estruturem a trama a partir da tradição das ficções fundacionais, espécie de subgênero literário transposto para o cinema desde seus primórdios. Tratam-se de histórias romantizadas que focam a formação de uma nação, ou ainda um momento decisivo desta, onde geralmente há um casal heterossexual central que é impedido de consumar seu amor por conta dos rumos políticos que sua nação está tomando. Logo, o romance ganha contornos revolucionários, já que ao lutar para ficarem juntos, o casal mostra resistência ao cenário político do momento, sendo sua única esperança a mudança governamental. Ao se inserir nesta tradição Gangues de Nova York está longe de ser original – podemos citar de Deus e o diabo na terra do sol a Star Wars como exemplos – mas, entende-lo como parte deste legado narrativo, redimensiona o filme e alguns de seus elementos-chave.
Apesar de um par romântico formado por estrelas ser lugar comum em Hollywood e servir como uma excelente estratégia de marketing, a relação entre Amsterdam e Jenny sobrepõe-se à mera vingança pessoal do protagonista, que nada mais é que um acerto de contas egocêntrico e individualista com o passado. Não à toa, Amsterdam falha em sua primeira tentativa de homicídio contra Bill. Para que o herói possa ter sucesso ao exterminar o vilão, o ato tem de ser nobre, representativo e declarado. Sempre visto ao lado ou até vestindo a bandeira americana, o Açougueiro ilustra alegoricamente a retrógrada oposição à imigração e ao multiculturalismo, valendo-se da violência e da tirania para atingir seus desejos; um personagem adverso aos arranjos políticos que se estruturavam a fim de alterar o status quo, ou seja, as novas políticas propostas pela União. Se o herdeiro de Vallon simboliza a mudança progressista, chegando a Nova York como um imigrante enquanto festeja-se o fim da escravidão, Bill posiciona-se como a figura refratária aos novos tempos – o que Scorsese deixa bastante claro ao filmar o personagem arremessando uma de suas facas contra um pôster de Abraham Lincoln, enquanto escravos e abolicionistas comemoram o fim do regime escravocrata.
Ainda na chave alegórica, o desenrolar romântico sofre frequentes interrupções causadas direta ou indiretamente por agentes externos. Suas primeiras interações íntimas são impedidas pelo incômodo que Amsterdam sente pela relação que Jenny mantém com seu inimigo, sendo a mera lembrança do açougueiro um repelente capaz de inibir tanto o sexo quanto o envolvimento emocional. Somente a partir do momento em que a oposição contra os Bowery Boys torna-se assumida é que os amantes alcançam a união, cuja força motriz tem cunho político por excelência: com o apoio de Jenny, Amsterdam recruta imigrantes irlandeses para ressuscitar a gangue liderada por seu pai, e também para apoiarem um candidato irlandês a xerife nas eleições. Prevendo a vitória iminente dos imigrantes nas urnas, Bill mata o representante apoiado pelos Coelhos Mortos, causando revolta em diversas outras gangues que se organizam para um embate final.
Na manhã de 13 de julho de 1863, enquanto membros de diversas gangues iam para as ruas munidos de porretes e tijolos, os primeiros homens eram convocados para lutarem pelo Norte. Antes mesmo que os Coelhos Mortos, os Bowery Boys e os respectivos aliados começassem a batalha, a cidade estava tomada pela selvageria generalizada. Prédios eram incendiados, policiais perseguidos e negros, inclusive crianças, eram linchados e mutilados com requintes de crueldade por supremacistas brancos que os culpavam pela guerra. Enfim, a hostilidade entre Amsterdam e Bill gradativamente havia passado do âmbito pessoal para proporções nacionais.
A câmera de Scorsese faz com que a luta final entre os dois confunda-se com os embates que os cercam, um verdadeiro circo de horrores sanguinolento que toma toda a extensão do gigantesco set, construído dentro do lendário estúdio italiano Cinecittà. Porém, apesar das proporções épicas, o tom do embate é notadamente o de ausência de sentido, a selvageria injustificável e até surreal (a única trégua é causada pelo choque das gangues ao presenciar um elefante fugindo pelas ruas em chamas).
O jogo alegórico chega a seu ápice quando Amsterdam (não à toa um nome notadamente estrangeiro) golpeia fatalmente seu opositor, cujas últimas palavras resumem o mau que os acomete: - “Graças a Deus, eu morro como um verdadeiro americano”. Não que Scorsese, nova-iorquino de origem ítalo-americana, corrobore com esta definição xenófoba do que seria um americano legítimo. Mas supostamente encerra-se ali, com a morte de Bill, essa noção obsoleta. Desta forma, o casal pode finalmente se reunir. Supostamente porque o diretor encerra seu filme com dizeres pessimistas de Amsterdam: - “E não importa o que tenham feito para reerguer a cidade, daqui em diante, foi como se ninguém soubesse que um dia estivemos aqui”. A câmera deixa os túmulos de ‘Padre’ Vallon e Bill, sepultados um ao lado do outro, e ergue—se para nos golpear com a imagem das torres do World Trade Center, intactas.
Não deixa de ser uma espécie de alerta, afinal, a linha que divide o onipresente fundamentalismo americano do fascismo é muito tênue, e ao longo da história do país o patriotismo tem servido de combustível disfarçado de cura para os traumas de uma nação que embora seja cega e surda, infelizmente, acha que tem muito o que falar.
Lucas Procópio Caetano é mestrando em multimeios pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)