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Em uma matéria virtual, o G1 afirma que a releitura do martírio de Jesus Cristo interpretada pela modelo transexual Viviany Beleboni “chocou” parte das pessoas na Parada Gay de São Paulo do dia 7 de junho. A afirmação é potencialmente verdadeira, mas não escapa de ser burra e tendenciosa, como em quase todas as vezes em que a mídia usa a ideia do “choque” para facilitar a sua própria compreensão das coisas.
A performance de Beleboni pode ter chocado tanto quanto encantado, como me encantou e a muitos dentro e fora do movimento LGBT. Mas só podemos ficar com o alvoroço da polêmica, a defesa ou a acusação da imagem. A trans que representa a crucificação deve ser politicamente defendida por ser uma minoria tratada socialmente com uma crueldade notável inclusive por aqueles que exigem o respeito silencioso às religiões (especificamente a uma religião). Essa defesa é necessária e justa. Mas o que pretendo aqui é defender o uso da imagem de Jesus Cristo crucificado ou de qualquer imagem religiosa dentro de uma sociedade oprimida pela religião em questão, um tipo de iconoclastia subversiva na marcha de Viviany.
Um amigo, perplexo diante das reações reacionárias de pessoas que se dotavam de uma pose de “razão” e “neutralidade” para falar contra a imagem, questionou o ensino de Artes nas escolas. Ao trazer a educação artística básica à discussão, ele traz também a necessidade da crítica, como leitura individual ou coletiva de um objeto, que usa a imagem e, ao fazer isso, pode estar tão plena de intenções quanto quem criou a imagem.
A arte não é criação, mas recriação, e isso não está só limitado à filosofia do Remix que se popularizou nos últimos anos. Estamos constantemente ressignificando imagens também fora do universo pessoal de intenções artísticas. As religiões modernas e contemporâneas construíram seu imaginário visual a partir de outros mais antigos. Se a obsessão já superada pelos romances de Dan Brown tiver servido de alguma coisa, que seja para a consciência global disso.
Então, as imagens, mesmo aquelas consideradas sagradas em algum ponto, nunca foram “respeitadas” nem nunca serão (tomara, tenho pavor da possibilidade de permanência), e isso é independe da moral que reflete se elas devem ou não ser, pois simplesmente não são. Para além disso, há o uso da imagem para reverter seu efeito. Na leitura contemporânea, costumamos chamar isso de sátira.
Há uma memória geral da sátira cômica: Chaplin, os irmãos Marx, Monty Phyton, os personagens de Baron Cohen e a revista Charlie, todos reutilizam a imagem cada um a partir de uma circunstância particular que dá a cada uma de suas ressignificações um caráter político distinto. Há também, correndo à margem, a sátira sóbria e séria que assume o seu caráter político, o que a cômica tenta muitas vezes (em vão) recusar.
Curiosamente, no mesmo dia em que São Paulo viu desfilar a paixão de Viviany, cumpri uma antiga dívida cinéfila e assisti, pela primeira vez, Salò, ou 120 Dias de Sodoma (Pier Paolo Pasolini, 1975). Conheço pouco Pasolini, mas pelos quatro filmes que vi (além desse, Édipo Rei, O Evangelho Segundo São Mateus e o documentário Comícios do Amor) já é possível ver algum interesse do diretor pelo imaginário visual e simbólico. Comícios do Amor e Sodoma, no entanto, são os que, para mim, melhor dialogam sobre a subversão de figuras e a denúncia da face mais sádica do ideal fascista de ordem e obediência.
Em Comícios do Amor (1964), Pasolini experimenta com a inovadora possibilidade do som direto, viajando ao redor da Itália fazendo perguntas sobre o comportamento sexual da população. O filme é dividido em segmentos por temas, lugares e classes sociais e pontuado por comentários de psicólogos e escritores. Em um desses blocos, Pasolini, um diretor conhecidamente gay (para nossa perspectiva histórica distante, lógico), pede aos entrevistados uma opinião sobre os “invertidos”, como a sociedade italiana se referia à minoria LGBT. Ele ouve, silencioso, apaixonadas declarações de repulsa que, novamente da nossa perspectiva distanciada, fazem revirar o estômago. No mesmo ano, lançou também O Evangelho Segundo São Mateus, filme adorado pela Igreja Católica, de tamanha beleza e simplicidade que se permite apreciado por duas perspectivas ideológicas completamente distintas. É uma prova, das mais raras, da supremacia afetiva da imagem.
Já Sodoma, sobre líderes fascistas e religiosos que sequestram jovens para uma experiência sexual quase militar, não é, obviamente, popular com os fiéis. Tenho evitado dizer que Sodoma ridiculariza seus personagens (como poderia ser facilmente entendido), porque antes o filme reconhece seu caráter trágico: do jovem que é vítima da obsessão fascista e também do seu macabro opressor, uma burguesia moralista acanhada, que precisa justificar intelectual e politicamente cada um de seus desejos. Sodoma talvez seja uma melancólica vingança contra os personagens de Comícios do Amor, ou apenas uma fantasia imaginada a partir do que foi documentado.
A Paixão de Viviany poderia ter sido mais um Evangelho Segundo São Mateus, uma imagem tão forte e reconhecidamente bela, referente ao episódio literário (ou histórico, se preferir) mais passível de uma solidariedade hegemônica. Mas da trans na cruz, por circunstâncias políticas e de lugar (a Parada Gay de São Paulo), foi feito Sodoma, um desafio político engajado que temos que defender militantemente ou acusar da mesma forma.
Encerro com a imagem que circulou tanto que corre o trágico risco de ter sido banalizada. Mas preciso trazê-la, não como “choque” e não de forma militante (como, por exemplo, compartilhei-a no Facebook), mas porque acho que ela merece existir em pura intenção de beleza.