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Recentemente, alguns colegas ridicularizaram publicamente a ode ao cinema clássico americano, evidenciada nos elogios ao último filme de Clint Eastwood, Sniper Americano, acusando-a de ser politicamente alienada. O comentário gerou uma repercussão de troca de farpas e indiretas bem diretas. No meio de tudo isso, um amigo cinéfilo soltou o ótimo comentário “cada um tem o seu panteão”.
É uma verdade meio óbvia, mas frequentemente esquecida nos confrontos. O cinema é uma expressão gigantesca e bem diversa. Cada sujeito afetado por ele, envolvido no que chamamos de cinefilia, tem seu gosto enraizado em pontos bem diferentes da sua história. Acho que a cinefilia, como eu a entendo, implica no máximo conhecimento das formas, mas não necessariamente na sua máxima apreciação.
Há também, e eu acho que isso é crucial para o cinema e a crítica, uma questão de geração. Sempre falo como fui afetado pelas animações clássicas da Disney, minha infância é contemporânea a uma época em que os estúdios Disney tentavam trazê-las de volta nos novos filmes, no que ficou conhecido midiaticamente como “Renascimento Disney”. Quando adolescente, achei que meus primos e sobrinhos, como eu e as pessoas da minha idade, teriam contato com os mesmos filmes da Disney, o que são basicamente todos desde 1938 aos anos 1990. Mas não, isso mudou, o pedigree da qualidade narrativa do estúdio perdeu força diante da animação gráfica da Pixar e da Dreamworks. Ano passado escrevi para o Cineplayers uma série de artigos chamada “Um lamento pessoal, saudoso e nostálgico à animação tradicional”, esse lamento só existe em mim porque não existe no cinema de animação que é produzido hoje. Ele superou a animação tradicional, o que não é ruim nem bom, é apenas parte do processo.
Estou escrevendo esse texto porque esta semana assisti pela primeira vez ao Jurassic Park, do Spielberg. O filme é do mesmo ano em que nasci. Eu cresci com o cinema de aventura do Spielberg, com exibições de E.T. – O Extraterrestre na televisão e fitas VHS de Indiana Jones e Contatos Imediatos de Terceiro Grau. O cinema infantil dos anos 1990 é bem forte, feito pela geração de Spielberg ou por pessoas influenciadas diretamente por ela. George Miller dirigiu Babe, e Chris Columbus, Esqueceram de Mim, herdamos também o drama coming-of-age americano dos anos 1980 com Meu Primeiro Amor e Agora e Sempre. Misturamos um bom bocado de gêneros em fantasias infantis absurdas, e ainda fortes na memória coletiva, como Abracadabra e as adaptações Convenção das Bruxas e Matilda.
Contido dentro de todos esses filmes, ou em paralelo a eles, está o gênio do primeiro cinema de Spielberg. Não é de se surpreender que, em 1998, o personagem Dawson, de Dawson’s Creek, tivesse uma certa obsessão pelo diretor. Os seus filmes, até exatamente 1993, eram a melhor expressão do cinema infantil de aventura, ainda não superada. Nada do que Tim Burton, Peter Jackson, Joss Whedon, e muito menos Christopher Nolan e Zack Snyder fizeram depois disso sequer se compara. Nenhum deles teve o mesmo controle para os maneirismos do gênero ou conheciam tão bem o limite do espetáculo e da carga dramática.
O primeiro cinema de Spielberg reproduz, com uma evidência sutil, a moral do desejo pelo fim da Guerra Fria. São apelos pacifistas pelo fim da paranoia, do cientificismo, pelo contato humanizado, antibélico, são também bastante ambientalistas, colocando a esperança de reconstrução do mundo nos ombros dos seus personagens infantis solitários, sempre preparados para ver o que há de errado na maneira adulta de lidar com as coisas.
Não é preciso pesar muito na retórica para entender Encurralado como uma representação da paranoia de classe média americana. É curioso que o filme seja televisivo (apesar de que seria muito injusto dar-lhe a conotação negativa de “filme para televisão”), acredito que essa paranoia à época era mais televisiva do que cinematográfica. É como se víssemos na TV uma fábula que mostre as consequências de vermos muita TV.
Lógico que Encurralado pode ser também apenas um filme sobre um homem comum perseguido por um caminhão de motorista oculto, e funciona perfeitamente assim. Aí está outro belo traço do bom Spielberg, o filme se abre para um bom bocado de possibilidades de leitura, mas é excelente sendo também apenas artifício.
Eu olho para um Caçadores da Arca Perdida – grande filme – e vejo que me esforçaria demais na tentativa de encaixá-lo num contexto de temas autorais do Spielberg para sair uma ideia preste. De qualquer forma, é uma obra-prima do cinema de aventura simplesmente porque Spielberg não erra a mão na porra-louquice, no absurdo e na fantasia. Aí ele faz um Parque dos Dinossauros e entrega um filme de monstro mais impactante que os 20 anos de evolução na computação gráfica que o seguiriam.
O meu problema com Spielberg é quando ele traz o princípio do não conflito de seus filmes de aventura para seus dramas históricos. Como disse o crítico Jonathan Rosembaum falando de Lincoln e A Lista de Schindler, Spielberg filma o senso comum saudosista e pacifista da história. Isso é até bem americano, o não questionamento dos bons heróis do povo está tanto em Schindler como em A Mocidade de Lincoln, de John Ford, e A Conquista da Honra, de Eastwood. É a maneira como os americanos entendem a própria história. Deve ter alguma relação com a sua inacreditável estabilidade política desde a Guerra Civil.
Faz parte do panteão deles, como Jurassic Park é parte do meu.