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[caption id="attachment_990" align="alignleft" width="300"] (Divulgação)[/caption]
Nos últimos dias, engatei uma maratona de Buffy: a caça-vampiros, depois de anos de insistência dos amigos buffetes. A série é espetacular em muitos sentidos. O que mais me encanta é como Joss Whedon, o showrunner, criou um universo completo, com herança histórica, tradição e regras próprias. À Terra Média e Nárnia credita-se um pioneirismo nesse sentido.
Frequentemente, Tolkien é aclamado pela criação de línguas, espécies, etc. Não sou um grande fã de O Senhor dos Aneis, mas admiro profundamente a sua capacidade de contemplar uma história muito maior do que aquela contada, uma história infinita. Nas últimas décadas, a literatura fantástica (no cinema, na televisão ou nos romances de fato) tem se voltado bastante para a possibilidade de criar um universo além do contido na narrativa singular, uma fonte inesgotável, ou várias delas. Harry Potter, A Guerra dos Tronos, Duna, Guerra nas Estrelas, esses nomes sugerem apenas uma parte, às vezes muito mínima, do todo.
Estou, no entanto, limitando-me à fantasia, onde a criação de um universo, mesmo que não tão macro, já é esperada, mas isso pode ser encontrado em outros gêneros, que criam um universo de personagens e histórias interligadas dentro do nosso mundo, real e visitável, utilizando-se da nossa macro História, nossas regras e tradições. Podemos dizer que isso é o que acontece em toda obra de ficção não-fantástica. Ainda assim, alguns autores são capazes de estender a sua criação mais além do que outros. As séries de TV, pela sua própria linguagem, exigem que o universo seja amplo e coerente o bastante para ambientar quantas temporadas der lucro e, depois do fim da série, talvez um ou outro spin-off. Este ano, Breaking Bad, uma das melhores séries de drama já produzidas, ganhou o spin-off Better Call Saul.
Na verdade, não é preciso entrar nas arrogâncias de melhor e pior para justificar por que a aliança Breaking Bad-Better Call Saul ou, simplesmente, a Albuquerque de Vince Gilligan é particularmente interessante. Há várias questões envolvidas, a principal delas é própria a cidade. Fãs, críticos e o próprio Gilligan já trabalharam a ideia de Breaking Bad como uma releitura do cinema de faroeste, ou uma releitura da sua releitura. A série pretende, de fato, diversas e curiosas homenagens ao cinema americano clássico e moderno. Alguns planos e trocas de falas poderiam até ser acusados de fetichismo cinéfilo, se não parecessem tão autênticos e adequados ao universo de Gilligan. Não foi preciso completar uma temporada de Better Call Saul para que se circulasse nas redes sociais paralelos imagéticos entre esta e os filmes Rede de Intrigas e Sindicato de Ladrões. Mas a relação das duas séries com o cinema de gênero (faroeste ou gângster, mas principalmente o primeiro) vai além do seu jogo exposto de referências.
Dou essa especificidade à aproximação com o faroeste por uma questão de paisagem. A região que no nosso tempo, no tempo de Walter White e Jimmy McGill, é o estado do Novo México já foi ocupado pelos nativos Navajo, Apache e Ute. O lugar é uma das várias sinédoques a que se refere toda a mitologia do Velho Oeste ocupado, do deserto nativo hostil, um obstáculo para a coragem do homem bravo. Pernalonga e Papa Léguas, os desenhos, são também personagens/arquétipos de Albuquerque, pra você ter uma noção do quanto popular é o seu deserto.
O espaço natural do Novo México é essencial para a construção estética de ambas as séries, filmadas em locação. Várias cenas hoje icônicas de Breaking Bad se usaram do isolamento permitido pela vasta extensão de terra ainda desocupada. O não deserto de Albuquerque, no entanto, será tão importante quanto para a assimilação das obras de Gilligan como parte do gênero. Uma questão das séries é a cidade de fato presente em Albuquerque, o que foi construído em cima do deserto, em contraste com a natureza. A especulação imobiliária em um lugar como Albuquerque ainda é uma ocupação do Oeste não explorado (antes, pelo homem branco; agora, pela completa possibilidade do capitalismo) e inspira um conflito social contemporâneo não muito diferente do velho Apache vs. Cowboy. Os traficantes imigrantes e descendentes de imigrantes latinos em Breaking Bad são representados de maneira bem diferente do bandido branco. O último não dá o mesmo valor ideológico e cultural para as suas escolhas criminosas. Ainda assim, seria um absurdo se manter nessa aproximação entre o imigrante ilegal e o nativo, são duas perspectivas de terra e propriedade completamente diferentes. O que me interessa nessas diferenciações é o bandido branco, ladrão de terras e produtor de metanfetamina.
Por esses dias, vi também pela primeira vez o belíssimo Os Brutos Também Amam, um dos mais icônicos faroestes da velha Hollywood. Nas terras do filme, a presença de nativos já é um passado que não incomoda os personagens. O conflito da trama é outro. Pequenos proprietários estão sendo constantemente assediados pela gangue de um grande fazendeiro interessado nas terras deles. O filme não abre mão da divisão simples entre o bem e mal. Mas há algo de curioso no mal de Os Brutos Também Amam: o tal fazendeiro diversas vezes repete que está sendo razoável, que a força é seu último recurso, que trabalha com a razão. O personagem não se reconhece como vilão, mas sim como um sujeito que está simplesmente tentando tomar o próximo passo para a construção do seu negócio.
Walter White, o protagonista de Breaking Bad, começa a série como um trabalhador americano de classe média baixa, ou melhor, de uma falsa classe média americana, que mantém sua boa casa com piscina no subúrbio, mas tem dificuldades evidentes com necessidades básicas, como saúde. Walter trabalha em dois empregos, está com câncer no pulmão, sua esposa está grávida e seu filho é deficiente e tem tanta vergonha do pai que adotou para si mesmo um segundo nome, de Walt Jr. para Flynn. Não só na casa dos White, Gilligan trabalha a ilusão do sonho americano e a descoberta do seu desastroso fracasso (pessoal e social). O autor continua a fazer isso em Better Call Saul.
Mas esse é apenas o ponto de partida de Walter White, ele vai atrás da satisfação e do reconhecimento prometidos pela moral empreendedora dos EUA aos bons e dispostos. Produz a melhor metanfetamina da região, pura, azul. Não há ninguém que produza algo da mesma qualidade. Na jornad, Walter White ganha em dois anos mais dinheiro do que poderá gastar em dez gerações. Ele montou o seu negócio.
A história de Walter White é uma narrativa de sucesso, de perseverança e dominação do homem. Better Call Saul, por outro lado, é a história do fracasso constante da não-ambição. Jimmy McGill não é Walter White, ele não vem da ilusão do sonho americano, mas do reconhecimento de sua fragilidade. Na sua adolescência, ele caía de propósito nos lagos congelados para cobrar indenização do governo. Mais velho, ele fez um curso de Direito por correspondência e passou no exame da Ordem. Seu irmão, advogado de sucesso, o rejeita na própria firma. Jimmy trapaceou o sonho, zombou dele ao escolher caminhos sem sacrifício pessoal. Jimmy não pode ser reconhecido em igualdade a seus pares de universidades de elite. Se for, todo o mito da meritocracia cairá por terra.
Walter White e Jimmy McGill são opostos que, juntos, completam a narrativa maior. Entre eles, estão todas as outras figuras da Albuquerque de Gilligan, variações sociais e de caráter dessas duas personas: imigrantes, elites intelectuais, policiais e outros. Todos se veem isentos da responsabilidade pelo mal, todos enxergam a própria razão e, ainda mais, a sua extensa razoabilidade. Estamos refletidos na ficção da Albuquerque de Vince Gilligan, na riqueza de significados e reconhecimentos do deserto ocupado. Acho que o maior efeito de se construir um universo além de um único personagem ou conjunto de personagens é que, de uma forma ou de outra, em algum lugar na sua extensão infinita de tempo e espaço, você faz parte dele. Gilligan abriu as estradas de Albuquerque até nós e ela virá até nós, se não formos até ela.