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[caption id="attachment_924" align="alignleft" width="300"] (Reprodução)[/caption]
O mais fascinante da leitura é como ela é uma possibilidade inesgotável para o objeto. Ler um filme é sempre reler um filme – já disseram tantos que se tornou injusto juntar a frase a um nome. Se um filme nunca se esgota na relação com seu leitor, tampouco se esgotará no futuro, quando se deparará com novos leitores e novas perspectivas de leitura, que podem ou não favorecê-lo diante da história. E assim se disputa pela eternidade.
A versão animada do conto A Bela e a Fera faz parte de um conjunto de filmes que posso genuinamente encher o peito para dizer que vi incontáveis vezes. Já descobri há seis anos que ter sobrinhos é uma chance, que sempre tomei com muita empolgação, de revisitar esses filmes ainda uma outra vez, de uma forma não tão industrial como a que o filme chegava a mim na infância (não que uma criança não tenha o mesmo potencial de leitura que um adulto, mas o habito de rever o filme numa frequência quase diaria não é tão interessante, ou pelo menos eu não lembro de ser).
Hoje de manhã revi A Bela e a Fera, havia visto o filme pela última vez há poucos anos, hoje acompanhado de uma sobrinha encantada pelo universo das princesas. O encanto veio ninguém sabe de onde, não encontraremos mais de um tom de rosa se vasculharmos o guarda-roupa da minha irmã, mas é respeitado como um gosto adquirido a que ela, como qualquer garoto ou garota, tem direito. Há alguns meses eu saltitei de satisfação ao presentear a pequena com os filmes da sereia Ariel, uma das minhas protagonistas Disney preferidas. E ultimamente fui encorajado por um texto de Kristi Harrison, do Cracked, sobre o protagonismo das princesas como um protagonismo feminino.
Sabemos que Frozen causou um grande alvoroço por sua dupla de protagonistas e o papel que elas exercem dentro da trama do filme (tudo é resolvido por elas, no fim das contas). Mas a paquera da Disney com uma representação mais feminista começou 20 anos antes, justamente com A Bela e a Fera, e depois continou por Pocahontas, Mulan, Valente, A Princesa e o Sapo, etc. Também nos filmes com protagonistas masculinos, os interesses amorosos dos herois não eram mais completamente ausentes ou puros arquétipos da sua jornada, mas tinham contornos de personagens que poderiam existir para além de seu par, como Jasmine, Esmeralda e Mégara, que tinham interesses dentro da trama que nem sempre encontravam os de seu amado.
Mas o que me chamou a atenção nessa revisão em particular não foi tanto o que poderia ser considerado feminista, mas o que é representação do machismo e do conservadorismo no filme. Bela é uma garota do campo, filha de um inventor, que gosta de ler e é uma figura estranhada em sua aldeia. Gaston (o primeiro vilão homem em filme de princesa) acredita que é seu direito, e um favor a Bela, tê-la como esposa. Gaston é um vilão particularmente detestável, ele está sempre encontrando uma maneira de se impôr pelo privilégio social do qual desfruta, forçando Bela para ele ameaçando o pai idoso da garota com acusações de insanidade e organizando a população para linchar a Fera.
O filme, de 1991, não está fora de contexto na sociedade da época. O preconceito, o conservadorismo generalizado e o machismo haviam vitimado uma geração inteira, assassinada pelo silêncio ao ter sua própria existência ignorada como uma de menor importância. O isolacionismo da Fera, o tempo que passa, prestes a acabar, o tempo da AIDS. O dramaturgo Larry Kramer definiria a vida na época como em uma guerra – “Todos os seus amigos estão caindo mortos ao seu redor, e você está esperando sua vez”.
Não pela primeira vez, assombro-me com a capacidade particularmente cinematográfica que o filme encontra de dizer as coisas que diz. Até porque A Bela e a Fera é de muitas formas uma homenagem ao cinema como expressão. O número À Vontade é uma ode às coreografias de Busby Berkeley, o cinema de Jean Cocteau e outros fantásticos dos anos 1940 são lembrados em imagens. A literatura angustiada com a morte que chega de Oscar Wilde também está presente. Como O Corcunda de Notre-Dame, depois dele, A Bela e a Fera sabe como denunciar a opressão e o preconceito imageticamente, não há um discurso verbal que possa acrescentar à construção de cena do filme. Gaston, em alguns momentos, parece ter o dobro do tamanho de outros personagens, inclusive a Fera. Esta é mostrada em sombras pelo primeiro terço do filme, até que Bela peça que se revele e revela a si mesma de volta, trazendo o personagem para a luz (literal e figuradamente).
Por fim, não acho que há qualquer história de amor da Disney que me convença tanto quanto esta. O afeto dos dois é genuinamente construído. Por quanto tempo? Meses? Anos? O ponto de confirmação do amor parte de Fera. “Eu a deixei partir porque a amo”, diz aceitando o fim como monstro. É ela quem o resgata, voltando. Talvez porque acho tão completo o amor dos dois, continuo a me incomodar com a sua transformação de volta em príncipe. Mas vale perceber a inicial hesitação de Bela diante da nova figura que surge. Desconfiada, ela toca seus cabelos, o plano então se fecha nos olhos do príncipe para selar o reconhecimento. Por Deus, nem mesmo David Lean contou o amor de forma tão eficiente através da imagem.
Não sei se os pequenos gostaram do filme tanto quanto eu. O irmão da admiradora de princesas se assustou bastante com o tom do filme, principalmente com a crueldade sofrida por Maurice, pai de Bela. Já vasculho outros filmes que possam ser apresentados aos dois, continuarei a usufruir dessa desculpa para uma revisita. Ainda tenho alguns anos. Mas verdade seja dita, já espero a pré-adolescência deles com um bom conjunto de filmes devidamente selecionados.