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[caption id="attachment_1182" align="alignleft" width="300"] (Divulgação)[/caption]
A ironia de Jane Austen (autora de Orgulho e Preconceito e Razão e Sensibilidade) é diferente da dos escritores britânicos que a seguiram: é desprovida do cinismo encantado de Oscar Wilde (O Retrato de Dorian Gray, A Importância de Ser Prudente) e do desespero de Virginia Wolf (Orlando, Ao Farol, Mrs. Dalloway). É uma ironia de afeto, que aprecia o universo e alguma coisa das maneiras sociais que levemente critica. E não é uma questão que fica no passado e que, na leitura de hoje, é entendida como parte de um processo de superação da aristocracia do campo. A maneira como Austen ainda é lida pela cultura popular até hoje mostra como a contradição de sua ironia persiste. As Patricinhas de Beverly Hills, por exemplo, é uma excelente adaptação de Austen, pois, como o romance Emma, em que é livremente inspirado, ridiculariza a afetação da elite, mas não está disposto a de fato romper com ela.
É uma contradição interessante que parece se repetir nos heróis e heroínas contemporâneos. Aliás, pode-se dizer que essa superioridade diante da sociedade, mas apreço pela manutenção dela, é quase um vício de construção de personagem. O artifício narrativo da ironia permitiu que o autor e o personagem se distanciassem do seu lugar sem deixar de fazer parte dele.
Mesmo o cinismo, quando se junta à ironia, não serve tanto para corromper a sociedade quanto para reconhecer a impossibilidade dela. Ele a questiona e ridiculariza, mas não está disposto a propor alternativas a ela. Ao entender que não há saída para como as coisas são, o cinismo adquire uma pulsão pela morte muito menos apaixonada que o mero suicídio, mas, como eu a entendo, mais trágica, porque entende a vida como um processo desprezível de espera pela morte. É dessa forma que Oscar Wilde, por exemplo, parece perceber a existência. Seu conto Star-Child, para mim um dos melhores, fala de um personagem arrogante por sua beleza que sofre um golpe de azar e fica feio, sendo forçado a buscar a humildade. No processo, ele é diversas vezes maltratado até encontrar a glória e a redenção como um bondoso rei. E o conto termina com um epílogo sádico: “Yet ruled he not long, so great had been his suffering and so bitter the fire of his testing, for after the space of three years he died. And he who came after him ruled evilly” (“Ainda assim ele não governou por muito tempo, tão grande tinha sido seu sofrimento e tão amargo o fogo da provação que depois de três anos ele morreu. E aquele que veio depois dele governou com crueldade”, na tradução para o português).
Esse cinismo de Wilde fala de uma dura busca por beleza por quem nunca vai conseguir nada além da morte. Cada palavra de apreciação estética de seus dândies, como Lord Henry, de O Retrato de Dorian Gray, esconde um mórbido pessimismo existencial. É o mesmo que Anita Rocha da Silveira faz em Mate-me por Favor, seu primeiro longa-metragem, e o que André Antônio se aproxima de fazer em A Seita.
Nos ânimos que tomam todo festival de cinema, acusou-se Rocha da Silveira de alienação, argumentando-se que sua obra era propositalmente desprovida de conteúdo político. Antônio escapou dessas críticas talvez por fazer uma abordagem menos popular do artifício, talvez porque Mate-me por Favor tem um colorido hollywoodiano e apego evidente à estética do mainstream. Em termos de construção política, no entanto, os dois seguem por caminhos parecidos. Tanto Bia (Valentina Herszage), a adolescente que decora trechos de Augusto dos Anjos enquanto espera a próxima vítima de um serial killer para consultar sua página no Facebook, quanto o Pequeno Príncipe (o nome que o personagem de Pedro Pinheiro Neves recebeu no roteiro de A Seita), que volta a um Recife decadente para se entediar, sempre desperto, diante do que a cidade tem de “exotérica”, apenas existem, imóveis, sem apreço pelo ciclo a que estão limitados, mas pouco dispostos a deixá-lo. Antônio é um pouco mais otimista e permite que seu personagem rompa o ciclo através do sonho. Rocha da Silveira insiste na letargia de corpos que vão aos poucos apodrecendo, contemplando em silêncio um processo de mutilação, sem reconhecer em si mesmos direito de voz ou de vida.
Não quero entrar na discussão de se o existencialismo é ou não um princípio político. Acho que este é um dos debates "sexo-dos-anjos" da literatura. Mas gosto de como a apreciação de desprezo pela existência limita os personagens dos dois filmes. Lembro-me de uma frase do maravilhoso Picnic na Montanha Misteriosa (Peter Weir, 1975): “Um número surpreendente de seres humanos são sem propósito, apesar de ser provável que eles estejam atuando em alguma função desconhecida a si mesmos”.