Escrito en
BLOGS
el
"Acho que se Boi Neon está conseguindo encontrar espaço em outros países é porque é um filme muito simples sobre um lugar em transformação. Vejo como uma possibilidade de um diálogo com uma experiência que talvez seja universal", disse o diretor Gabriel Mascaro em entrevista durante o VIII Janela Internacional de Cinema do Recife
Ao abrir, na última sexta-feira (6), a sessão de Boi Neon (Gabriel Mascaro, 2015) no VIII Janela Internacional de Cinema do Recife, o produtor e curador do festival, Kleber Mendonça Filho, afirmou, com orgulho fraternal, que o Janela havia exibido todos os filmes de Gabriel Mascaro. E Kleber não enche o peito à toa, pois Mascaro se tornou, em pouco tempo, um dos nomes mais significativos do cinema nacional. Um nome também controverso, como é natural que seja.
Um de seus filmes mais diretamente militantes, Um Lugar ao Sol (2009), sofre até hoje duras críticas por uma condução de discurso através da montagem, que é entendida como excessivamente tendenciosa (escrevi sobre o filme aqui). Pouco depois, apareceu com Doméstica, uma experiência cinematográfica fantástica que até hoje considero sua grande obra-prima.
Mascaro vive agora o auge do reconhecimento internacional. Boi Neon foi premiado e recebeu críticas encantadas em Veneza, Toronto e no Rio de Janeiro. Emocionado ao apresentar seu filme no Recife, ele foca a sua fala em apontar para os membros do elenco presentes na sessão, que veriam a obra finalizada pela primeira vez. No dia seguinte (7), consegui conversar um pouco com ele.
Milos Morpha - Você falou ontem, quando abriu a sessão de Boi Neon, que alguns atores do filme o estavam assistindo pela primeira vez. Conversou com eles depois? O que acharam?
Gabriel Macaro - Eles gostaram. Foi um trabalho muito intenso de imersão, não deixou de envolver uma entrega da vida pessoal. Foi um processo de cerca de um mês e meio de retiro nosso, com o elenco vivendo junto, sonhando junto. E aí ver o trabalho materializado traz um clima de felicidade, e eles estavam com a família presente.
MM - Você passou por um processo de pesquisa para criar os personagens e projetar esse universo da vaquejada?
Mascaro - Escrevi o roteiro em cerca de três anos, indo pra muitas vaquejadas. Tinha um interesse especial em pensar a vaquejada como um espaço de pesquisa. Ela me interessava pela relação que estabelece com o corpo dos animais, a hierarquia dos cavalos e dos bois e dos próprios fazendeiros. Não sei se você percebeu – não explicitei isso –, mas tem uma coisa que um cara pega o rabo do boi e passa pro outro, envolvendo toda uma hierarquia do corpo. Interessou-me pesquisar o corpo no contexto de uma festa que é muito forte na nossa cultura, que tem uma raiz na tradição desde o tempo em que os bois eram criados soltos e que hoje ganhou esse molde de espetáculo e é o segundo maior esporte a movimentar a economia do país, mas que ainda não é legalizado.
Era uma coisa que me interessava como pesquisa. Pensei em escrever um filme sobre os donos dos cavalos, tinha um argumento com a história nesse foco. Várias vezes me empolguei em viajar para escrever a história lá e não aguentava, terminava voltando. Então, foi uma tentativa de aproximação de um universo que a priori me afastava. E me interessa um trabalho em pesquisa em arte ou cinema me aproximar de um universo de que a priori não faço parte e que posso tentar acessar a partir de alguma forma. Foi quando conheci os bastidores do evento. Vi um ritual de preparação do rabo que me chamou a atenção, uma coisa que estabelecia mais uma coreografia corporal mesmo. E o cara que eu conheci na pesquisa realmente trabalhava no polo de confecção do agreste, em Itoritama. Foi um momento que me conectou com o mundo, em que me vi encontrando uma relação humana naquele espaço. O roteiro chegou nessa hora. Anulei a primeira ideia para escrever tudo de novo.
MM - Um dia antes do seu filme, foi exibido Big Jato (Claudio Assis, 2015), outra estreia local, no cinema São Luiz. O filme de Assis também é ambientado em um interior contemporâneo. Mas Boi Neon aponta para algumas mudanças na representação do sujeito do interior que não estão sendo representadas. Elas não são representadas em Big Jato nem de forma alguma na televisão etc.
Mascaro - Eu não vi Big Jato. Mas pra mim é muito orgânica a tentativa de perceber, construir e arquitetar um Nordeste que não tivesse como premissa jogar as pessoas para longe. E acho que é uma das teses do filme de Claudio, né? “Quem não é valente sai!”? Não tem valente e não tem que sair, acho que, pelo contrário, o Nordeste é um espaço em que as contradições humanas são de pessoas que estão naquele lugar, não querem sair, mas querem transformar suas vidas, a vida ordinária, do dia a dia. Para mim, é uma tentativa de me aproximar desse universo em transformação e perceber a paisagem humana e de que forma, observando essa paisagem em transformação, posso propor a suspensão de uma relação humana possível, em que os personagens não se julgam e brinquem o tempo todo com a expectativa que vamos criando da imagem da vaquejada e do cowboy.
A gente arquiteta uma série de imaginários pra associar a esse filme que conseguem aos pouquinhos levar a gente para outro lugar, descontruindo algumas noções de espaço, de relacionamento, de tempo. Um livro que me tocou muito durante a pesquisa foi A Invenção do Nordeste e outras artes [Durval Diniz de Albuquerque Júnior, editora Cortez], em que o autor resgata os primeiros usos da palavra Nordeste, dos primeiros viajantes que especificaram esta região (porque antes o Brasil era entendido como Norte e Sul, apenas). O Nordeste é uma invenção. Então, procurei estudar a evolução da invenção do conceito de Nordeste e perceber todo esse lugar histórico que é construído na literatura e no cinema, como no cinema novo e na literatura regionalista. E Boi Neon é uma tentativa de realegorizar esta história. Para mim é importante problematizar uma relação muito contemporânea. O filme vai tentar ler esses personagens numa contradição global e também especificamente do Nordeste. Acho que se Boi Neon está conseguindo encontrar espaço em outros países é porque é um filme muito simples sobre um lugar em transformação. Vejo como uma possibilidade de um diálogo com uma experiência que talvez seja universal.
MM - Em algumas críticas a Ventos de Agosto, comenta-se aproximações do seu estilo ao de um cinema oriental de diretores como Apichatpong. Esse cinema tem sido uma influência para você?
Mascaro - Realmente. Tem até um post do Tales of Cinema em que eles selecionam alguns filmes do BFI Film Festival e se faz essa conexão. Eu acho legal, acho que a ponte do cinema contemporâneo é isso mesmo. É um momento muito feliz de filmografias em interação, isso é importante. Sim, acho que tem influência. Mas não só disso, é um acúmulo de influências, não só do cinema como da arte contemporânea, de outras experiências minhas. Trabalho com fotografia, instalação, às vezes filmo, às vezes nem isso, como em Doméstica, que não é filmado por mim. Trabalho com imagens da Polícia Militar. Então, estou dialogando com várias outras experiências e, claro, tem horas que essas convergências do cinema contemporâneo surgem mesmo. Acho essas conexões boas, provocadoras, questionadoras, felizes. Só acho uma pena às vezes quando são conexões bobas, do tipo “Ah, tem uma palma de coco é Apichatpong”, ou porque tem uma floresta. Porque aí elas ficam num lugar muito comum de observação, eu acho que é muito mais complexo que isso. E há muitos outros cineastas que se aproximam talvez mais do que o Apichatpong, e a questão do fotógrafo que temos em comum reforça essa aproximação, mas tudo bem, está tudo certo aí. Deixa o pot-pourri decantar e perceber as convergências.
MM - O que admiro em sua filmografia é como seus filmes vão se desenvolvendo de uma forma em que alguns pontos de um novo filme respondem a determinadas questões de um filme anterior. Isso está muito claro na relação entre Um Lugar ao Sol e Doméstica. Pensando Ventos de Agosto e Boi Neon, esses filmes que vão às fronteiras do estado, há também esse diálogo?
Mascaro - É claro. Eu não teria feito Doméstica se não tivesse feito Um Lugar ao Sol. Não faria Boi Neon se não tivesse feito Ventos de Agosto. Acho que tudo é um processo. Há potências e filmes que surgem das fragilidades que você reconhece e de quando você busca outro caminho. Acho que é mesmo um exercício pertinente de olhar. Não é uma resposta, porque isso sugere uma negação, é mais uma justaposição. Estávamos demorando pra rodar Boi Neon, aí pensei “Vou rodar uma parada aqui com quatro pessoas, vou nessa e ver no que vai dar”. Foi uma coisa mais livre, sem grana, 50 mil. E serviu para experimentar algumas questões, alguns elementos de Boi Neon estão ali plantados. Os animais cresceram (risos). Mas tem algumas coisas de que eu realmente me aproximaria com mais intensidade em Boi Neon, uma busca ali, um lugar que se estabelece. Eu teria feito Boi Neon diferente se não tivesse feito Ventos de Agosto.
(Foto: Divulgação)