Precisamos conhecer Alan Turing, de "O Jogo da Imitação"

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Do encanto com os créditos de abertura de "Alice no País das Maravilhas", visto religiosamente sempre que exibido nas tardes de sábado pelo SBT, veio a paixão pelo cinema como experiência estética, transformadora e expressão de uma ideia, uma história ou do próprio experimento. Por amar o cinema para além dos padrões de qualidade impostos a ele pela mídia, por outras instituições e até por uma crítica datada, veio o meu amor por conversar sobre cinema, aderi-lo, defendê-lo, apropriar-me dele. O Milos Morpha é uma conversa sobre cinema. Aqui, o texto nunca é certo e definitivo. O cinema não é uma fórmula para que cada cineasta se aproxime da solução mais correta, é um conjunto de experiências artísticas que já dura mais de 100 anos, é dessa forma que criticamente percebemos e experimentamos o cinema no Milos Morpha.
[caption id="attachment_870" align="alignleft" width="300"](Foto: Divulgação) (Foto: Divulgação)[/caption] O quanto de um filme está contido no próprio filme, o quanto dele também é contexto e leitura? É evidente que não há uma resposta correta, que a subjetividade da crítica possibilita que o crítico (e não falo só daquele que escreve sobre o filme, mas também daquele que o lê) signifique o filme da maneira que achar correto. Trago essa questão aqui justamente porque ela moveu um saudável confronto de perspectivas entre mim e meu colega de  Cineplayers, Francisco Carbone, sobre o filme O Jogo da Imitação. Dividimo-nos aqui: sou da opinião de que questões pessoais e particulares podem ser trazidas para a leitura de um filme; de que, se assim não fosse, a função crítica seria muito linear, uniforme e, francamente, chata. Mas insisto nisso porque também acredito que o filme só existe a partir do olhar sobre ele (e reafirmo: não só um olhar que se diz profissional ou especializado), então, se a leitura traz algo, isso deveria ficar no filme e fazer parte dele. Ao objeto, O Jogo da Imitação é mais uma cinebiografia britânica quadradona; seu personagem, no entanto, não é por si só uma premissa tão popular quanto Stephen Hawking. Alan Turing foi o pouco conhecido matemático que decifrou Enigma, o sistema criptográfico alemão usado durante a Segunda Guerra Mundial, uma façanha que, segundo alguns historiadores, garantiu a vitória dos aliados. Turing não é muito famoso porque sua missão permaneceu secreta por décadas, mas seu trabalho é pai (ou já avô) da computação contemporânea. Outra coisa sobre Turing: ele era gay. Seria tendencioso dizer que a sexualidade de Turing foi um motivo para a sua anonimidade no século XX, apesar do papel que cumpriu nele. O seu projeto era de fato um segredo de Estado, para que pudesse ser continuadamente usado em outras guerras e táticas militares. Como a justificar seu desfecho e conferir mais teor dramático à narrativa, O Jogo da Imitação chega a se aproximar de um boato de caráter histórico já oficialmente questionado envolvendo a aproximação de Turing com espiões russos e uma chantagem que ameaçava revelar sua sexualidade. O roteiro do filme utiliza outros maneirismos para acentuar a tensão, o que é lamentável porque a história confirmada de Turing já é rica o bastante. Há muito que O Jogo da Imitação poderia ter explorado melhor, mas é covarde demais para se afastar do tom de thriller de guerra e fazer de fato um bom estudo de personagem. Dito isso, eu acho importantíssimo que exista um O Jogo da Imitação. É aí que entra a força do contexto. É crucial que a figura de Alan Turing, uma figura gay e à qual boa parte da tecnologia contemporânea deve a sua existência, seja amplamente conhecida. Não porque “nossos heróis devem ser conhecidos”, longe disso, até porque a importância de um sujeito ou objeto para a sociedade é relativa do ponto de vista da narrativa: se não houvesse uma máquina como a Enigma para ser decifrada, não teríamos Turing e, novamente, não teríamos a computação moderna. O exército alemão não é homenageado pelo cinema porque a história tomou o rumo que tomou, simplesmente. Não, é importante que Turing exista na memória cultural porque precisamos começar a ver o personagem gay para além da vítima ou do militante LGBT. Estas narrativas também são importantes, mas nós não estamos escassos delas. É preciso um herói de guerra gay, mesmo em um momento em que a própria ideia do herói de guerra vai ficando ultrapassada. Eu costumava relevar os problemas estéticos da série Scandal pelo que esta trazia de novo: uma mulher negra como uma das figuras mais poderosas e perigosas de seu país. É uma parte mínima, mas significativa, do empoderamento cultural das minorias. Então é provável que O Jogo da Imitação seja cada vez menos necessário. E, assim sendo, também cada vez menos interessante como cinema. É um filme que nasce datado, mas nós estamos vivendo a data dele. Celebrar o filme, o que faço, nunca será tão bom quanto superá-lo. Enquanto isso, luto para que cada pessoa que venha a conhecer o nome de Chris Kyle antes conheça o nome de Alan Turing.  
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