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O objetivo do exame preventivo é diagnosticar a doença, mas na verdade é aumentar o tempo de vida, a qualidade de vida, ou preferencialmente os dois. Diagnosticar e tratar a doença seria apenas um passo intermediário nestes objetivos.
Por Lucas Bastos Marcondes Machado*
Renata tem 27 anos, sente-se bem, mas vai ao seu médico para consulta e exames de rotina, como já faz há alguns anos. O médico pede alguns exames de check-up e desta vez pede também um ultrassom de tireoide. Renata faz os exames e para sua surpresa e aflição o ultrassom revelou um nódulo em sua tireoide. O médico recomenda uma aspiração do conteúdo do nódulo, e o resultado vem inconclusivo. A decisão final é de realizar a retirada de parte da tireoide devido a possibilidade de câncer. Durante a cirurgia optou-se pela retirada total da tireoide da paciente. O procedimento ocorre sem maiores complicações, Renata está bem, tomando hormônio tireoidiano uma vez por dia.
Podemos interpretar essa história como uma vitória da medicina moderna: uma doença grave reconhecida precocemente que levou a uma intervenção curativa, a paciente está bem e temos os recursos para repor o funcionamento do órgão retirado. Porém, temos que levar em conta que em um estudo norte-americano com pessoas saudáveis e sem sintomas, 21% das pessoas tinham nódulos de tireoide a palpação, e impressionantes 67% apresentavam nódulos ao ultrassom de tireoide! Em pesquisa com autópsias na Finlândia, 35,6% das pessoas que faleceram por diversas causas tinham tumores em suas tireoides, muitos desses tumores com menos de 1mm, o que provavelmente levou os pesquisadores a subestimar o número de tumores. Assim a história de Renata é praticamente a crônica de um diagnóstico anunciado.
Será que todos temos tumores na tireoide? Deveríamos correr para ter nossas tireoides examinadas e analisadas?
Temos que lembrar qual o objetivo de qualquer exame preventivo. Alguns poderiam pensar que é apenas diagnosticar a doença, mas, na verdade, o objetivo do exame preventivo também é aumentar o tempo de vida, a qualidade de vida, ou preferencialmente os dois. Diagnosticar e tratar a doença seria apenas um passo intermediário nestes objetivos.
O ultrassom de tireoide usado como rastreamento de tireoide cumpre estes objetivos? Parece que não. Sabemos disso por alguns estudos e um caso emblemático é o da Coreia do Sul: em 1999, o governo coreano iniciou um programa de rastreamento de câncer e doenças comuns no seu sistema de saúde. O rastreamento de tireoide não foi incluso no programa, porém por uma taxa pequena os pacientes podiam escolher fazer um ultrassom de tireoide como um extra ao programa governamental. Diversos hospitais comercializaram pacotes de check-up com ultrassonografia de tireoide incluída. Rapidamente vários pacientes optaram por fazer o ultrassom de tireoide, afinal, prevenir é melhor que remediar. O que se viu foi um crescimento dramático dos casos novos de câncer de tireoide, chegando a um aumento de 15 vezes nos diagnósticos. O que era esperado é que com tanta gente tendo descoberto cedo a doença, logo o número de mortes por câncer de tireoide caísse. Porém, apesar de todas essas pessoas tratarem adequadamente o câncer, não se viu nenhuma alteração na mortalidade. Além disso, aumentou muito o número de operações de nódulos pequenos. Um quarto dos pacientes coreanos que foram submetidos a cirurgia de tireoide tinham tumores menores de 0,5cm, onde a cirurgia muitas vezes não é recomendada.
O que significa isso? Provavelmente estavam tratando tumores que nunca iriam se espalhar, nunca iriam dar sintomas e nem levar a morte dos pacientes. Provavelmente são os mesmos tumores que os pesquisadores finlandeses descobriram em autópsias, como já citado no início deste texto.
Além de não trazer benefícios para a maioria das pessoas, o tratamento do câncer de tireoide traz malefícios claros: o mesmo estudo coreano cita que todas pessoas que tiram a tireoide têm que repor hormônio tireoidiano para o resto da vida. 2% tem lesão no nervo laríngeo recorrente, que leva a rouquidão, e 11% tem suas paratireoides retiradas juntamente com a tireoide, ficando com metabolismo ósseo prejudicado.
O nome que se dá a este tipo de diagnóstico, que revela uma doença que nunca daria sintomas ou que não mataria a pessoa é sobrediagnóstico. Este conceito já foi melhor explorado no post da colega Bruna. O rastreamento de câncer de tireoide é um caso exemplar deste fenômeno.
Então, podemos dizer que muitos de nós temos nódulos na tireoide, e muitos destes nódulos são câncer quando analisados... Porém, está tudo bem! Na grande maioria das pessoas isso não vai dar sintomas nem alterar o tempo de vida!
O problema do conceito do sobre diagnóstico é que nunca podemos ter certeza se a doença que o paciente tem vai progredir ou não, se vai afetar sua qualidade de vida ou não. Geralmente essa conclusão é feita posteriormente, com estudos populacionais. Ao receber um paciente com um diagnóstico de câncer de tireoide podemos até apostar que é um sobrediagnóstico, mas não podemos ter certeza. Assim, ao solicitar o primeiro exame de rastreamento (mal indicado) estamos muitas vezes iniciando uma cascata diagnóstica.
Cascata diagnóstica se refere ao processo em que os cuidados de saúde estão sujeitos a efeitos sequenciais. Ou seja, ao se deparar com um exame alterado, seguimos para o próximo passo da investigação, e assim por diante até a resolução do problema, como ocorreu com Renata. Uma vez iniciada uma cascata diagnóstica, mesmo com um exame mal indicado, é muito difícil ter segurança de parar de pedir exames. Esta sequência de investigação, assim como o potencial de sobrediagnóstico, deveria ser discutido pelos médicos com seus pacientes, numa tentativa de avaliar prós e contras de cada rastreamento.
Mas não temos só notícias ruins: em estudo recente a USPSTF, respeitado órgão americano que avalia medidas preventivas, desencoraja o rastreamento de câncer de tireoide. Um grupo de patologistas propôs uma mudança na nomenclatura do câncer de tireoide na intenção de reduzir intervenções desnecessárias. Um grupo pequeno de médicos sul-coreanos começou a se manifestar na mídia contra o excesso de ultrassonografias de tireoide em seu país, e já conseguiram resultados importantes. Tudo isto deve levar a redução de solicitação inadequada de ultrassonografia de tireoide e maior discussão dos males causados pelos exames mal indicados.
O leitor atento pode ter algumas dúvidas: “então... quando é bom ter sua tireoide examinada?”, “o que fazer em relação a minha tireoide?". Quando notar alguma alteração ou apresentar um sintoma é bom discutir isso com um profissional de saúde. Por exemplo, um paciente que nota um caroço na região do pescoço deve falar disso com seu médico, neste caso específico o exame físico de tireoide e ultrassonografia de tireoide podem estar indicados.
Mas de modo geral uma recomendação que parece sensata é deixar a tireoide em paz, sem nenhum exame de rotina. Outra recomendação saudável é estabelecer uma relação de confiança com um médico em que ele explique os riscos e benefícios de exames, principalmente os preventivos, e em que você se sinta confortável de perguntar e tirar dúvidas. Lembrando que, nem sempre, prevenir é melhor que remediar.
*Lucas Bastos Marcondes Machado é médico de Família e Comunidade, gosta de ficção científica, quadrinhos, cerveja, pessoas e gatos. Paulistano e ateu, menos quando o São Paulo joga
Foto: Commons