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[caption id="attachment_29025" align="aligncenter" width="553" caption="Condições para paralisações de garis, professores, motoristas e cobradores de ônibus resultam de política econômica do governo Lula"][/caption]
Por Gilberto Maringoni, na Caros Amigos
Para Armando Boito Jr., professor titular de Ciência Política da Unicamp, vivemos na última década um período de ganhos reais para os trabalhadores. O que teria propiciado isso seriam taxas mais robustas de crescimento econômico e uma nova relação do Estado com o movimento sindical.
Boito, que desenvolve pesquisas sobre as relações de classe no capitalismo neoliberal no Brasil e na América Latina e é autor de O Sindicalismo na Política Brasileira (Editora IFCH-Unicamp), avalia que “o sindicalismo tornou-se uma força importante no processo político nacional”.
Nesta entrevista ele fala de organização social, da existência de um conjunto de forças que buscam construir uma frente neodesenvolvimentista e da importância da elaboração de um projeto nacional. E ainda opina sobre as grandes manifestações de junho de 2013: embora o tom geral tenha sido progressista, “é preciso superar o espontaneísmo nas lutas”.
Caros Amigos – O senhor tem afirmado que, na última década, os trabalhadores tiveram ganhos reais de salário – ou seja, reajustes acima da inflação – como há muito não se via. A que o senhor. atribui essa nova situação?
Armando Boito Jr. – Desde o ano de 2004, as condições da luta sindical melhoraram muito e os trabalhadores estão logrando tirar proveito dessa situação. Contrariando análises correntes na década de 1990 e presentes ainda hoje, o sindicalismo brasileiro entrou num período de ascensão. As estatísticas de greves e os levantamentos sobre acordos e convenções coletivas produzidos pelo Dieese evidenciam isso. Vou dar apenas alguns números. No ano de 2004, tivemos pouco mais que trezentas greves. Esse número veio crescendo de maneira linear e ininterrupta. Em 2012, foram mais de 800 greves.
Esse crescimento da atividade grevista não foi inócuo. Se no ano de 2003 apenas 18% dos acordos e convenções coletivas tinham logrado obter aumento real de salário, de lá para cá, e também num crescimento linear e ininterrupto, chegou-se, em 2012, a cerca de 95% dos acordos e convenções coletivas com aumento real de salário.
Esses números são muito significativos. Penso que eles dão apoio à tese que tenho defendido de que o sindicalismo brasileiro, após atravessar um período de grandes dificuldades na segunda metade da década de 1990 e nos dois primeiros anos da década de 2000, entrou, a partir de 2004, num período de forte recuperação.
Como essa recuperação se manifesta?
Ela não aparece apenas na atividade grevista e nos resultados positivos que tem propiciado aos trabalhadores. Aparece também no fato de que o sindicalismo tornou-se uma força social importante no processo político nacional. O sindicalismo vem atuando como força integrante, embora subordinada, daquilo que eu denomino frente política neodesenvolvimentista. O movimento sindical teve um papel importante na eleição de Dilma Rousseff, em 2010, quando todas as centrais sindicais a apoiaram, de modo ativo e ostensivo. E, aqui, tocamos naquele que é, no meu entender, o motivo dessa recuperação do movimento sindical.
O que explica essa recuperação?
Na década de 1990, foi hegemônico um tipo de análise que atribuía, de maneira unilateral e simplificada, as dificuldades do movimento sindical às transformações na estrutura ocupacional e nas relações de trabalho. Seguindo autores europeus como Clauss Offe, dizia-se que “a classe trabalhadora” – considerada assim de maneira muito genérica – tinha se tornado mais complexa e mais heterogênea.
Tal heterogeneidade teria minado na base o movimento sindical. Na época, publiquei textos destacando aqueles que eram, para mim, os equívocos dessas análises. Destacava, em primeiro lugar, que as classes trabalhadoras, e aí incluída a classe operária, sempre foram muito heterogêneas. Os historiadores mostram que o movimento operário de massa, surgido na Europa do último quartel do século 19, unificava, na ação reivindicativa e política, uma massa de trabalhadores muito heterogênea no que respeita às condições de trabalho, ao nível e forma da remuneração, à qualificação, à etnia, à língua etc.
Eric Hobsbawm afirma que foi a luta que organizou essa massa tão heterogênea e díspares como classe. Em segundo lugar, eu lembrava também que embora o capitalismo neoliberal tivesse introduzido divisões novas nas classes trabalhadoras, ele tinha, também, borrado divisões antigas.
O movimento era contraditório. Amplos setores da classe média, até então indiferentes ou mesmo hostis ao sindicalismo, tinham, devido ao crescimento do assalariamento e à piora das condições de trabalho e de remuneração da classe média, se integrado ao movimento sindical. Aliás, podemos ver que no ciclo de greves recentes do Brasil, os trabalhadores do setor público, em que predominam trabalhadores de classe média, têm tido uma posição de destaque – são responsáveis por cerca da metade das greves do período.
E isso criou uma convergência nas lutas, mesmo com essa situação heterogênea, não?
Sim. A crítica prática à tese da heterogeneização das classes trabalhadoras como suposta causa do refluxo ou crise do movimento sindical na década de 1990 foi feita pelos próprios trabalhadores que se colocaram em greve no Brasil do século 21. De fato, de acordo com essa tese, o sindicalismo somente poderia recuperar-se quando essa heterogeneização das classes trabalhadoras recuasse.
Ora, não houve, no Brasil do século 21, tal fenômeno. A terceirização, a precarização, os novos métodos de organização do trabalho, as novas tecnologias continuam todos aí sem mudança significativa e, no entanto, os trabalhadores passaram a acionar vitoriosamente a arma da greve.
O que mudou, então?
Foi a conjuntura – econômica, política e ideológica. A conjuntura era a grande ausente nas explicações para a crise do movimento sindical da década de 1990. Os analistas concentravam-se, de maneira unilateral, como já frisei, na análise da estrutura ocupacional e da situação de trabalho. O que mudou no século XXI é que foram retomadas taxas mais altas de crescimento econômico, reduziu-se drasticamente o desemprego, governos de esquerda e de centro esquerda chegaram ao poder.
No Brasil, foi implementada uma política de recuperação do salário mínimo. A ideologia neoliberal entrou em declínio. Todas essas mudanças favoreceram o movimento sindical. São elas que explicam, conjuntamente, a recuperação do sindicalismo brasileiro nas décadas de 2000 e de 2010.
Em suas análises, o senhor fala também que há dois setores principais: um bloco que envolveria o grande capital internacional – que pressiona governos para a adoção de medidas neoliberais – e uma segunda configuração, composta pela grande burguesia interna – grandes empresas, construtoras, mineradoras, agronegócio, etc. – que seria uma “frente neodesenvolvimentista”. Como o movimento sindical tem se articulado nessa disputa?
De fato, a burguesia está dividida e o movimento sindical está explorando essa divisão. Como já ficou implícito na resposta anterior, o sindicalismo tem obtido ganhos ao explorar essa divisão. Entretanto, ele tem arcado com custos também.
Como assim?
A partir da década de 1990, ganhou força a ideia de globalização. Não cabe aqui analisar a maneira equivocada como o conceito de globalização apreende essa nova fase, que é real, de internacionalização da economia capitalista.
O que cabe indicar é que, da ideia de globalização, muitos deduziram a ideia de que teria se formado uma “burguesia mundial”. Tanto no centro quanto na periferia do sistema capitalista, as burguesias locais estariam desaparecendo, dando lugar a uma classe burguesa única em escala mundial.
Na verdade, a nova onda de internacionalização do capitalismo fez declinar as antigas burguesias nacionais, mas não tornou homogênea a classe capitalista. Permaneceram, nos diferentes países, algo que poderíamos denominar, seguindo Nicos Poulantzas, burguesia interna – uma fração burguesa que, nos países dependentes, sem serem antiimperialistas, possuem, contudo, interesses específicos que a distinguem da grande burguesia imperialista dos países centrais.
No caso do Brasil, a grande burguesia interna, que tinha dispensado um apoio seletivo ás reformas neoliberais, passou a pleitear, ao mesmo tempo, mudanças na política econômica. Essas mudanças foram implementadas, justamente, pelos governos do PT. O ponto principal é o seguinte: utilizar o Estado como indutor do crescimento econômico e como protetor do grande capital interno.
Como isso se materializou no Brasil?
Com a nova política de financiamento do BNDES, o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), as políticas de conteúdo local, que obrigam o Estado e as grandes estatais a darem preferência para a produção local em suas compras, as medidas de proteção tarifária, o deslocamento da política externa para o eixo Sul-Sul e outras medidas. É isso que eu denomino política neodesenvolvimentista que é, na minha definição, a política de desenvolvimento possível dentro do modelo capitalista neoliberal ainda em vigor.
Que forças políticas levaram essa orientação adiante?
Essa política foi implantada por um partido de esquerda e de base operária e popular. De resto, foi esse fato que permitiu que tal política amealhasse apoio popular. Vieram, juntamente com as novas medidas de política econômica e convergentes com ela, uma nova política social: recuperação do salário mínimo, programa de moradia popular, programas de transferência de renda e de apoio à agricultura familiar. Desse modo, os governos da última década construíram aquilo que denomino uma frente política neodesenvolvimentista. Integram essa frente a grande burguesia interna, que é a sua força dirigente, a maior parte do movimento sindical, a baixa classe média, o campesinato e os trabalhadores da massa marginal. Todos têm ganhado algo com essa frente, embora a grande burguesia interna seja a grande favorecida pelo neodesenvolvimentismo. O movimento sindical, por exemplo, embora tenha obtido os ganhos que indicamos ao responder a questão anterior, não tem logrado alcançar suas reivindicações históricas de redução da jornada de trabalho, de regulamentação restritiva da terceirização e outras.
E quem está fora dessa frente?
Estão fora o grande capital internacional e a fração da burguesia brasileira enfeudada nesse capital, que se opõem ao neodesenvolvimentismo e pressionam pelo aprofundamento das reformas neoliberais, e a alta classe média que serve de base social para esse setor burguês. No plano partidário, são, principalmente, o PSDB e o DEM, que vocalizam os interesses desses setores sociais.
Quais as idéias principais existem no interior da chamada “frente neodesenvolvimentista”?
Temos, pelo menos, três correntes de ideias mais ou menos delimitadas. Uma corrente, representada por economistas da FGV-SP, que propõe aquilo que denomina o “novo desenvolvimentismo”. Essa corrente expressa, no meu entender, principalmente os interesses da grande burguesia interna. Ela enfatiza a necessidade de desvalorização cambial para se atingir uma taxa de câmbio que preserve a competitividade da produção nacional. Outra corrente, representada principalmente por economistas da Unicamp, que se autodenomina “social-desenvolvimentista” e que dá importância maior para os interesses das classes trabalhadoras, propondo medidas de distribuição da renda como alavanca para o crescimento econômico. Uma terceira corrente é aquela representada por intelectuais vinculados ao movimento popular que priorizam a luta pela reforma agrária, pelos investimentos sociais do Estado (saneamento, saúde, transporte, educação) e pela distribuição de renda. Fazem isso sem romper, contudo, com a ideia central segundo a qual o desenvolvimento econômico – que é o desenvolvimento da economia capitalista – ainda tem algo a oferecer à população trabalhadora brasileira.
Essa apresentação sumária das ideias presentes na frente neodesenvolvimentista é suficiente para indicar que essa frente possui, ao mesmo tempo, um terreno comum e muitas contradições internas.
Desde junho de 2013 – com os movimentos sociais articulados a partir dos protestos contra aumentos de passagens de transportes coletivos – ressurgiu o debate sobre modos de organizar a sociedade. Muitos afirmam que a organização em partidos, sindicatos e outros tipos de agremiação estaria superada. O que deveria existir seriam organizações horizontais, sem lideranças. Qual sua opinião a respeito?
As manifestações de rua em 2013 foram muito heterogêneas. Nela estiveram presentes tanto setores sociais que ainda integram a frente neodesenvolvimentista, o que era um sintoma das contradições existentes nessa frente, quanto os setores sociais que querem a retomada do neoliberalismo puro e duro. Foram manifestações social e politicamente heterogêneas, embora a tônica tenha sido dada pelos setores progressistas.
No campo do movimento popular, grassou de fato o culto ao espontaneísmo e a crítica aos partidos políticos em geral. Essa disposição ideológica, como pudemos ver em 2013, deixou o caminho aberto para os setores neoliberais ortodoxos e para a direita política tradicional perseguirem, não os partidos políticos em geral, mas, exatamente, os partidos de esquerda que participavam das manifestações.
Mas a organização social tradicional estaria superada?
A organização é tudo para o movimento operário e popular. Os partidos políticos de massa, com ampla organização da população trabalhadora, congressos regulares, programas políticos discutidos e aprovados em congressos, foram criação do movimento operário. A burguesia não precisa desse tipo de partido. Ela já tem o Estado para organizar seus interesses.
Os partidos burgueses com um mínimo de institucionalização e de base popular surgiram apenas em resposta aos partidos de massa e para disputar a direção dos trabalhadores. Hoje, devido à crise do movimento operário, a burguesia não tem mais necessidade de mimetizar a organização dos partidos de massa. Isso provocou um esvaziamento dos partidos políticos em escala internacional. Eles enfraqueceram seus vínculos com os diferentes setores sociais.
Funcionam, em sua maioria, como funcionavam os partidos burgueses clássicos, que são partidos de quadros parlamentares e que atuam fundamentalmente apenas nos períodos eleitorais. A crítica necessária a esses partidos não deve nos levar à crítica dos partidos políticos em geral. Os trabalhadores, que não dispõem da estrutura institucional e repressiva do Estado para defender seus interesses, precisam organizar partidos políticos próprios para que suas reivindicações possam prosperar e para que, além das reivindicações, eles possam forjar um programa de transformação social.
Mas existem vários setores que rejeitam a organização.
O culto ao espontaneísmo é um sintoma de impotência política e uma atitude que reproduz essa impotência. No Brasil atual, o espontaneísmo, no campo popular e progressista, é apanágio do Movimento Passe Livre (MPL). Esse movimento foi vitorioso naquilo que podemos denominar a Revolta da Tarifa, que foi o movimento que desencadeou as manifestações de 2013.
Os governos recuaram no reajuste das tarifas de ônibus, mas também de luz, de pedágio e outras. Ficaram temerosos diante da mobilização popular. Porém, para avançar, inclusive na luta por transporte público acessível e de boa qualidade, é preciso, penso eu, superar esse espontaneísmo. As próprias vitórias parciais como a de 2013 colocam exigências mais complexas para a continuidade da luta.
As empresas de ônibus estão organizadas e os seus interesses estão resguardados em vários níveis e ramos do aparelho Estado. Isso dá força e continuidade na defesa dos interesses dessas empresas. Por isso, a luta popular por transporte requer sua própria organização.
Que pontos de articulação podem existir entre organização social e projetos de sociedade?
Eu penso que é importante distinguir, sem separá-las, a luta reivindicativa da luta pelo poder. Ambas exigem organização, embora a luta pelo poder exija uma organização mais sofisticada.
A luta reivindicativa defende interesses pontuais de um ou mais setores das classes populares: salário, moradia, transporte, educação, saúde etc. Essa luta reúne todos os interessados numa determinada reivindicação, que podem, contudo, estar em desacordo no que tange a outras lutas tão ou mais importantes que aquela que os unifica.
Esse tipo de luta cria organizações específicas: sindicatos, movimento por moradia, movimento estudantil etc. Elas contemplam também setores populares específicos. Esses movimentos são obrigados, queiram ou não, a dirigir-se às autoridades constituídas, reconhecendo, por esse ato, a legitimidade de tais autoridades e são obrigados a negociar com elas. Todas essas lutas visam à melhora das condições de vida das classes populares dentro do sistema capitalista. São importantes e podem obter muitas vitórias, mas não rompem com os limites que esse sistema impõe ao atendimento dos interesses das classes populares.
A luta pelo poder é algo diferente. Para essa luta, as classes populares necessitam de um programa político geral de mudança social ou de um “projeto de sociedade”, como foi formulado na pergunta. Essa é uma luta geral, que envolve todas as classes da sociedade, organizando as classes populares contra as classes dominantes e centrada na luta pelo poder de Estado. É essa luta que é travada pelos partidos políticos.
Os partidos são organizações que elaboram programas que transcendem as reivindicações e setores específicos, procurando unificar o campo popular num projeto de mudança social. Fazem também a luta dentro do sistema, pressionam e podem negociar com as autoridades constituídas. Mas podem, também, lutar pela superação da sociedade existente e para isso necessitam conquistar o poder de Estado.
É certo que um partido operário ou popular não pode se separar da luta reivindicativa. Deve considerar as reivindicações populares na definição e nas necessárias atualizações do seu programa, deve contar com a força das lutas reivindicativas inclusive para avançar na organização política das classes populares. A luta reivindicativa e a luta pelo poder podem se fortalecer mutuamente. Porém, o partido político organiza um tipo de luta, que é a luta pelo poder de Estado, que é distinto da luta reivindicativa.