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por Eneas de Souza*, no Sul 21
Uma análise da realidade brasileira mostra que ela está atravessada, como toda a sociedade contemporânea, pelo menos por três grandes conflitos: a concorrência intercapitalista, a concorrência entre os Estados, e a concorrência entre o Estado e o Capital. E é vendo sob este ângulo que nós podemos compreender as dimensões da política profunda do Brasil. Política, tomada aqui como expressão dos embates da economia política. E o consequente reflexo dessa luta entre os grupos sociais na formulação de uma política econômica. O quadro em que navegamos atualmente mostra, entre a cortina do palco e o pano de fundo do teatro da economia contemporânea, a plenitude de uma crise do capitalismo.
Avultam, então, conflitos intensos entre os próprios capitais, e o efeito final seria o de remoçar as estruturas capitalistas. E isso só pode acontecer se o capital chegar a algum porto seguro, a alguma estrada nova. E essa tem uma placa: terceira revolução industrial. Mas, atenção!, não nos iludamos: se ela acontecer, será uma terceira revolução industrial organizada hegemonicamente pelas finanças de um lado, pelas indústrias líderes dessa revolução de outro, e pelos Estados Nacionais que lideram a geoeconomia e a geopolítica de uma terceira margem.
A LUTA À MORTE DOS CAPITAIS NA CONCORRÊNCIA
A luta à morte dos capitais em competição passa pelas finanças e pelas corporações que funcionam na esfera produtiva, agora organizada em cadeias mundiais de valor. As finanças precisam, nesse momento, criar as condições para o estabelecimento de novas bases com vistas a um novo e amplo ciclo especulativo. E o avanço da especulação depende de um ambiente, de um clima econômico, que vem muito do dinamismo da economia produtiva. Pois é sustentado nesse dinamismo que as finanças, por exemplo, organizam um leque de lançamento de ações, promovem a venda de produtos financeiros para atender as necessidades das tesourarias das empresas e inventam novas idéias ? papéis privados, por exemplo ?para dar segurança e rentabilidade excessiva aos inversores em geral (indivíduos, firmas e mesmo Estados). Só que a luta à morte entre os concorrentes prossegue e continua em todos os instantes como um vulcão. Percebe-se que o combate empresarial desenha o cenário e alimenta a dinâmica dessa atual e longa crise econômica. O capitalismo funciona com este acorde melódico: o desarranjo da economia é funcional para a sua futura solução. No caso presente, a transformação da crise deverá desembocar na construção de uma nova arquitetura da economia. Essa golden era, como diz Carlota Pérez, seria a 3ª revolução industrial.
A SUBSTITUIÇÃO DA LIDERANÇA PRODUTIVA
Os conflitos da presente disputa balançam o processo capitalista. Esse jogo vai dar na substituição da liderança da economia produtiva. Como já sabemos, o negócio passa por trocar o setor petróleo e o setor automobilístico pelas novas tecnologias de comunicação e informação, pelos novos materiais, pela biotecnologia, etc. Ou seja, os novos setores dinâmicos são aqueles que estão produzindo uma permanente revolução tecnológica, aqueles que dão lucratividades exuberantes, aqueles que mais puxam e encadeiam os demais setores, aqueles que mais estão movimentando e organizando a sociedade. São esses que passam à frente e ocupam o lugar dos antigos líderes.
Vejam como as novas tecnologias de comunicação e informação estão transformando vários setores como a própria finanças, como as indústrias bélicas, como a indústria midiática, etc. E elas estão na liderança porque, obviamente, além de serem as propulsoras tecnológicas da dinâmica das empresas desses outros setores, são companhias que estão em constante transformação, são corporações que tornam elásticas a sua taxa de lucro. E essa explosão é tão significativa que essas taxas são maiores que muitas taxas especulativas. Se duvidarem, dêem uma olhada nas empresas que estão no topo daquelas mais rentáveis. O importante é ver como esses setores emergentes se rearranjam e tomam a liderança por relação, principalmente, à indústria de automóveis.
Contudo, no setor petróleo, a passagem para sua realocação ainda vai levar um bom tempo. Como a energia é uma infraestrutura fundamental de qualquer paradigma, sua reposição, seu deslocamento definitivo na 3ª revolução industrial, depende da fixação de uma nova energia dominante. Isso só se fará no médio ou longo prazo.
ESTRATÉGIA BRASILEIRA E A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL
Então, o Brasil tem uma estratégia para essa realidade, para esse futuro. Em primeiro lugar, o país se avantaja para entrar nesse novo padrão de acumulação. No primeiro momento, o seu objetivo é integrá-lo, através da agroindústria e do petróleo. São dois setores chaves. Um deles, o primeiro, fornecerá bens indispensáveis para a reprodução da mão de obra mundial. E o segundo, ocupará com intensidade um lugar no setor de energia ? são os tempos do pré-sal. Assim, o Brasil, de um modo geral, não deixará de estar presente no padrão que nos referíamos. É isso que alguns chamam de primarização da economia brasileira. Sim, mas o que não quer dizer que o país não terá uma presença forte na economia mundial, tudo depende da amplitude das nossas pretensões e de nossas potencialidades.
Há um terceiro aspecto na estratégia brasileira, um outro setor, que foi o setor líder da 2ª revolução industrial. E ele está hoje em processo de deslocamento dinâmico, onde o Brasil se apresenta como forte candidato. Trata-se do já comentado setor de automóveis. O país é, agora, grande consumidor, e se volta para se tornar produtor de grande porte. A estratégia do Programa Inovar-Auto já está permitindo que o Brasil seja uma das fronteiras da expansão de grandes empresas automobilísticas. E o vento desse crescimento vem da Ásia, e, especialmente, é de origem chinesa. (Os resultados recentes da queda da produção da economia do automóvel em 2013 é um fenômeno conjuntural, em função da retirada das medidas anteriormente tomadas pelo governo. A questão que estamos colocando aqui envolve o norte estratégico do longo prazo, e esse norte re-estruturará a conjuntura vigente.)
Observação: esses três setores estratégicos (agroindústria, petróleo, automóveis) têm na liderança fortes empresas mundiais (no petróleo, a PETROBRÁS), que organizam amplas cadeias globais de valores. Elas abrem um processo de fertilização, quando inscritos no Brasil, que atingem toda a economia brasileira.
UMA NOVA ESTRATÉGIA PARA O ESTADO NACIONAL
Essas realidades impõem uma nova estratégia para o Estado Nacional. E isso convoca e clama realidades políticas ? inclusive políticas partidárias e eleitorais importantes. Há que sustentar um novo modelo de desenvolvimento da economia brasileira. E são essas conexões que irão organizar as políticas monetárias, cambiais, financeiras e fiscais. Precisamos entender, então, a estratégia. E a estratégia do Brasil é simples, é alcançar uma inserção significativa no padrão de acumulação da 3ª RI, em cima do petróleo, dos alimentos e dos automóveis.
Isso nos mostra algo que se oculta nos debates. Embora o Brasil possa ser um país onde as empresas produzam milhares de inovações, o que é ótimo, no entanto, nos setores avançados do novo padrão, nos setores de liderança, a nossa posição será de seguir o rastro das empresas principais, o rastro do cometa. Podemos nos preparar sim, para o longo prazo. O economista brasileiro Wilson Canno nos dizia que o Brasil entra nas novas revoluções industriais com um razoável atraso. Não parece ser diferente aqui nesse novo padrão.
A SUSTENTAÇÃO DA POLÍTICA PROFUNDA
Olhado isso, a pergunta estala: o que significa, em termos políticos, a sustentação dessa estratégia? Nós estamos num momento de mudança fundamental, mas continua a proposta política básica que veio desde 2002: um arco de aliança que envolva um pacto social determinado: capital e população. E como ele é um pacto estrutural, o que se quer saber é como vai se fazer novamente esta soldagem?
Em primeiro lugar, está em marcha, no e pelo governo Dilma, uma alteração decisiva nesse pacto. Dilma foi a Davos e avisou: o setor privado é bem-vindo. O que significa isso? É preciso ler bem a declaração da presidenta. Em primeiro lugar, mantém a posição em favor do capital. Contudo, o seu objetivo dá um passo adiante. Trata-se de proporcionar, nesse momento, um papel mais expressivo ao capital estrangeiro. E o que é que ela está propondo? Um aumento fundamental no aporte de recursos estrangeiros para o ponto dinâmico do investimento. Dilma está convocando o capital internacional a participar do ponto frágil da nossa economia: o investimento em geral. Mas, sobretudo ? e aqui está o calcanhar de Aquiles brasileiro ? os múltiplos investimentos em infraestrutura. E como são consideráveis os necessários recursos, nem o Estado nem o capital nacional têm numerário suficiente para tal. E, para dar corpo a essa pretensão, o elemento substancial é o capital internacional. E não importa o seu selo de procedência, pode ser capital de origem financeira ou capital de origem de corporação produtiva. Os dois vêm bem.
DILMA TROCA O SINAL DO GOVERNO LULA
Essa aliança com o capital muda uma faceta do governo Lula. Lá, a partir de 2002, o que Lula fez foi um acordo com o capital, mas articulou bancos nacionais e capitais privados para enfrentar, fundamentalmente, as finanças internacionais, que aprisionavam o Brasil em termos de dívida externa, de financiamento do investimento, e mesmo bloqueando o investimento estrangeiro produtivo das grandes empresas. Lula apostou e ganhou. Jogou e se falou de um lance ?getulista?. Agora, a situação mudou. E, sem desprezar o capital nacional ? como empreiteiras, por exemplo ? o gesto de Dilma é trazer uma nova onda de capital estrangeiro para permitir que o capitalismo avance no Brasil. A face do gesto político tem agora mais uma inspiração ?juscelinista?.
O problema, no entanto, é o seguinte: como fazer que o avanço do capitalismo seja também um avanço para a população? No governo de Lula, o tema era um conjunto de políticas sociais importantes: aumento do salário mínimo real, Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, Luz para Todos, Prouni, etc. E qual é, então, o problema de Dilma? É tentar manter, sustentar, transformar e ampliar essas políticas. Em todos os pontos onde os avanços sejam possíveis. Dessa forma, tem que buscar novas rendas, novos espaços de consumo, novos benefícios para os operários e os trabalhadores, como ampliar a incorporação de indigentes, etc? Porque com isso, se soldará o que falávamos acima: o pacto estrutural capital-população. Esse pacto assegurará não só um novo governo para Dilma como a manutenção do desenvolvimento econômico, com avanços desiguais para capitais (estrangeiros e nacionais) e para a população. Avanços desiguais, mas avanços.
E QUAL É O ROSTO DA INQUIETAÇÃO NA ECONOMIA?
Para enxergar a face da inquietação na economia do Brasil, cabe considerar alguns aspectos. Eles mostram as contradições que afetam o clima geral das três concorrências que colocamos no início do nosso texto.
(1) O governo, por mais que se esforce ? e se esforçará ? não poderá impedir que vários capitais possam perder a competitividade vis-à-vis os capitais internacionais, e possam ser excluídos dessas cadeias globais de valor;
(2) a política nacionalista passa por dois lados: o benefício da população e o apoio às alianças de capitais nacionais com internacionais. A capacidade competitiva limitada das empresas brasileiras não permite um avanço exclusivamente nacional na participação mundializada da 3ª revolução industrial;
(3) o centro da política nacionalista tem que ter como prioridade a população, visando principalmente salários e melhores condições materiais, sociais e culturais de vida. Só assim a população retribuirá o apoio político ao Estado. Esse item envolve certamente a questão urbana como uma questão desafiadora.
(4) os equilíbrios e desequilíbrios dessa estratégia dependerão muito da soldagem desse pacto e da força que a população dará ao Estado, como diz o item 3, para que ele possa negociar em posição forte com os múltiplos setores do capital.
A PASSAGEM DO ABISMO
Poderíamos dizer que o objetivo da Dilma é a passagem da política econômica, com ênfase no consumo, executada exitosamente pelo governo Lula logo depois da crise de 2007/08, para outra fase do desenvolvimento da economia brasileira, outra etapa da política econômica do investimento. Só que essa passagem tem uma duração, um timing, demorado. O centro da questão, o abismo que temos de atravessar é somente um, mas robusto: como superar os obstáculos (políticos, econômicos, jurídicos, estratégicos, diplomáticos, midiáticos) à expansão da economia através de volumosos investimentos em infraestrutura? Foi isso que o Brasil constatou: o setor privado, o setor público, o Brasil como um todo, tinham baixos índices de investimento, exatamente por causa da falência do campo da infraestrutura. Problema que veio do século passado e atravessou os governos FHC e Lula, que estiveram lutando, de modos diferentes, para resolver o aprisionamento do Estado brasileiro pelas finanças internacionais. O governo Lula conseguiu equacionar essa terrível questão. E, ao mesmo tempo, com uma política pública para a maior parte da população, obteve a absorção de cerca de 40 milhões de pessoas no mercado nacional. E agora, para um novo passo na direção do capitalismo no Brasil, é indispensável, que haja um novo acordo estrutural entre capitais internacionais e nacionais e a população. Acordo estrutural que significa que as forças sigam com atos objetivos e simultâneos na mesma direção. Para tal, a população tem que estar colada ao Estado. Pois só ele pode negociar o processo de desenvolvimento do Brasil na 3ª revolução industrial. E de maneira a equilibrar minimamente as relações de poder, para que os benefícios não sejam só engolfados pela lógica do capital, mas também se distribuam pelos habitantes do país.
(O que fiz acima foi desenhar e interpretar como se afigura a tendência da economia brasileira na nova revolução industrial em andamento. Daí pode emergir duas perguntas. A primeira: porque será que a oposição à direita não tem proposta alternativa às propostas do governo, salvo nas questões conjunturais? A segunda: a oposição à esquerda tem uma proposta consistente de metamorfose da sociedade capitalista?)
LAMENTO HUMANO E CULTURAL
(Queria expressar neste final, fora das discussões, minha profunda dor, como crítico de cinema e admirador do cinema nacional, pela morte do cineasta Eduardo Coutinho. Um cineasta que deu uma enorme contribuição na concepção do documentário brasileiro e mundial. Assim como Glauber Rocha, Eduardo Coutinho foi um grande inovador do cinema. Se Deus e o céu existirem, Coutinho fará um esplêndido documentário sobre o reino celeste, assim como fez, um dia, um documentário maravilhoso sobre o Edifício Master. Imaginem, então, Coutinho entrevistando Deus!)
* Enéas de Souza é economista, psicanalista e crítico de cinema.