Escrito en
BLOGS
el
Por Pedro Pomar, colunista do Escrevinhador
Eugenio Bucci, colunista de O Estado de S. Paulo, ex-presidente da Radiobrás (no governo Lula), acaba de publicar um intrigante texto opinativo, intitulado “O PT contra o ministro do PT”. Nele, Bucci comenta a resolução “Democratização da Mídia é Urgente e Inadiável”, aprovada pelo Diretório Nacional do Partido em 1° de março e que foi objeto de editoriais críticos desse mesmo jornal, bem como de ataques do ministro Paulo Bernardo (Comunicações), publicados com destaque pelo mesmíssimo Estadão.
No seu artigo de 21 de março (cuja íntegra está disponível aqui), Bucci diz o seguinte, em resumo: que o PT “combate ferozmente” o Ministério das Comunicações; que o PT está fazendo “chantagem” contra o governo; que a reivindicação do marco regulatório da comunicação é expressão do “furor censório” que anima o partido e as esquerdas latinoamericanas; que as alegações de Paulo Bernardo contra a resolução petista estão corretas, mas o ministro deve sim iniciar o processo de regulamentação, pois esta diz respeito apenas à “modernização do mercado”.
Custa crer que tal coleção de distorções, meias-verdades, erros factuais e estereótipos do discurso reacionário tenha saído da pena de um, ao menos até recentemente, filiado petista, que chegou a fazer parte do conselho editorial da revista Teoria&Debate, pertencente ao PT (Fundação Perseu Abramo). Foram as ligações partidárias de Bucci que o levaram a galgar a presidência daquela que era, à época, a principal empresa de comunicação do governo federal, a Radiobrás, no primeiro mandato de Lula.
A militância conservadora de Bucci não é recente. Mas é provável que os seus laços orgânicos com o capital “midiático” tenham se estreitado quando ele se tornou o diretor do curso de jornalismo do Grupo Abril, oferecido em parceria com a Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Neste curso “de pós-graduação em jornalismo, com ênfase em direção editorial”, os parceiros de docência de Bucci são gente como o próprio Roberto Civita, big boss do Grupo Abril; João Sayad, o homem que desmantelou a TV Cultura; Judith Brito, executiva do Grupo Folha que se notabilizou por reivindicar para a mídia o papel de oposição; Ricardo Gandour, diretor do Estadão etc.
Com tais companheiros de viagem, não é de espantar que Bucci faça um discurso tortuoso, em que consegue jogar no lixo sua condição de professor de jornalismo ao reduzir a necessidade de adoção do marco regulatório do setor, que é o ponto central do debate, a uma mera questão de “modernizar o mercado”, como se as enormes implicações políticas, culturais, sociais da atuação da mídia não existissem. Ainda como professor, deveria saber, e ensinar aos seus alunos, que a retórica anticensura dos empresários da mídia guarda enorme dose de hipocrisia, uma vez que são eles, os patrões, os maiores censores das suas próprias mídias, algo que qualquer jornalista com alguma experiência já experimentou na própria pele.
Examinemos agora, detidamente, os principais comentários de Bucci:
1) “O Ministério das Comunicações acabou trombando com um partido que lhe faz oposição sistemática. Esse vetor oposicionista atende pelo nome de Partido dos Trabalhadores. Isso mesmo, o PT. O mesmo partido ao qual o ministro titular da pasta, Paulo Bernardo, é filiado desde 1985, o mesmo partido que apoia o governo de Dilma Rousseff combate ferozmente o Ministério das Comunicações.”
Na verdade, é Paulo Bernardo que vem “trombando” com o programa histórico do PT na área de comunicações, bem como com as resoluções da Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), realizada em 2009, convocada pelo próprio governo Lula. O PT não faz “oposição sistemática” a Paulo Bernardo, nem “combate ferozmente o Ministério das Comunicações”. Tanto que o ministro assumiu em janeiro de 2011, mas só agora o partido se pronuncia sobre as políticas adotadas por ele. As resoluções da Confecom têm sido solenemente ignoradas pelo governo. Bastaria uma rápida pesquisa para que Bucci descobrisse isso.
2) “O PT quer para já a chamada regulamentação dos meios de comunicação. (...) Na resolução os petistas cobram também a revisão das isenções concedidas às empresas do setor”.
O PT tem boas e diversas razões em “querer para já” o marco regulatório. A Constituição Federal de 1988 vem sendo desrespeitada nos seus artigos que tratam do assunto. Como já decorreram 25 anos, é tempo de mudar. O sistema de mídia, oligopolizado e altamente concentrado nas mãos de poucos e poderosos conglomerados (a começar pelas Organizações Globo), vem atuando ostensivamente contra o processo de democratização da sociedade brasileira.
3) “Paulo Bernardo tem bons argumentos contra seus antagonistas. ‘A Constituição veda a censura e, portanto, o marco regulatório não pode ser confundido com controle da imprensa nem com nenhum tipo de controle de nada’, alega. Tem absoluta razão. Existe, de fato, em algumas áreas da oposição ao Ministério das Comunicações um certo furor censório, por assim dizer”.
Essa afirmação de Bucci é pura distorção. Ora, a declaração de Paulo Bernardo parece destinada aos empresários da mídia e seus porta-vozes — que confundem propositalmente, para fins de propaganda negativa, marco regulatório com censura — e não ao PT. Se o “recado”, contudo, tiver mesmo sido para o PT, então ambos estão redondamente errados.
Os movimentos sociais e o PT nunca defenderam censura, mas sim controle social dos meios de comunicação, por meio da regulação, de modo a garantir a proibição da propriedade cruzada (controle simultâneo, por uma mesma empresa, dos diferentes segmentos: TV aberta, TV por assinatura, rádio, impressos, Internet e outros); o fim do oligopólio nacional e dos monopólios regionais e locais de mídia, conforme definido pela Constituição Federal; bem como assegurar os direitos ao contraditório, à diversidade (cultural, regional, social, étnica) e à pluralidade de opiniões.
“Furor censório” existe em jornais como a Folha de S. Paulo (dirigida por Judith Britto, a colega de Bucci na ESPM), que conseguiu tirar do ar, por via judicial, o blogue Falha de S. Paulo. “Furor censório” existe no Grupo Abril, pertencente a outro colega de Bucci, o publisher Roberto Civita, e que demitiu o repórter Felipe Milanez por este haver cometido o desatino de criticar (em seu blogue pessoal) a revista Veja. “Furor censório” existe na TV Globo, onde William Bonner decide o que deve ou não ir ao ar no Jornal Nacional com base em avaliações de como reagiria à matéria em questão o personagem Homer Simpson (outro exemplo: os espectadores foram levados a crer que o único país a sofrer com a tempestade “Sandy” foram os Estados Unidos — Cuba e outros simplesmente não foram citados).
4) “Em parte por vingança contra os veículos que deram ampla cobertura ao julgamento do mensalão, em parte por oportunismo populista, há quem argumente à boca pequena que regular os meios de comunicação é uma forma de enquadrar o jornalismo, forçando as emissoras a adotar pautas mais favoráveis às agendas oficiais. Ondas assim vêm se agigantando no Equador, na Venezuela e na Argentina. Se bem-sucedidas, levarão a uma relativa asfixia dos debates democráticos. É (...) desconcertante notar que setores da esquerda na América do Sul tenham tomado para si estratégias autoritárias que as ditaduras militares tentaram, sem sucesso, impor aos meios de comunicação”.
Aqui Bucci se excede em matéria de alinhamento ao discurso patronal, cometendo erros crassos. Ocorre que a luta pela democratização da comunicação e por um novo marco regulatório é muito anterior ao chamado “mensalão”. O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), por exemplo, foi criado em 1991! É hilariante ver Bucci repetir a retórica da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) sem que tenha ao menos a decência de citar o ativo engajamento de emissoras de TV no fracassado golpe de Estado contra o presidente Chávez, em 2002. Ou sem admitir que a Ley de Medios argentina foi elogiada pelo relator da ONU para Liberdade de Opinião e Expressão, Frank de la Rue.
Mais grave ainda, por reiterar o absoluto desconhecimento que Bucci tem da história latinoamericana, é sua afirmativa de que “as ditaduras militares tentaram, sem sucesso, impor [estratégias autoritárias] aos meios de comunicação”. Ora, ao contrário do que afirma o colunista do Estadão, as ditaduras militares tiveram, infelizmente, grande êxito na imposição de suas estratégias autoritárias. No Chile, Argentina e Brasil jornalistas foram perseguidos e assassinados, e jornais que faziam oposição a esses regimes foram também combatidos pelos militares. A maioria dos meios de comunicação enquadrou-se. Quem reagiu foi calado à força.
A condessa Pereira Carneiro, proprietária do Jornal do Brasil, chegou a ser presa pela Ditadura Militar. No Brasil, a censura prévia aos jornais impressos vigorou entre 1968 e 1975, mas foi além disso para TV e rádio. Os jornais tinham censores de plantão nas redações. Quando a censura prévia acabou, o legado ficou: os próprios patrões (e seus prepostos) passaram a exercer a censura. É surpreendente que Bucci desconheça essas deploráveis conquistas do poder ditatorial.
5) “Diante disso, o Ministério das Comunicações erra ao silenciar. Com sua morosidade acaba dando forças ao PT. Paulo Bernardo bem sabe que o Brasil precisa de uma nova legislação que dê jeito em vícios graves da radiodifusão; sabe que isso nada tem que ver com censura, mas com modernizar o mercado”.
“Mercado”? Ele é apenas um dos aspectos do marco regulatório. Como dissemos mais acima, a principal questão em jogo é a democratização dos meios de comunicação, em diversos sentidos. Por que Bucci não detalha o que chama de “vícios graves da radiodifusão”? Porque teria de abordar questões desagradáveis como fraudes por parte dos concessionários de TV e rádio, aluguel de horários para programas religiosos televisivos, conteúdos deletérios (tais como BBB), jornalismo enviesado.
A Inglaterra, nesse exato momento, está formulando um novo marco regulatório. Não por questões de mercado, mas pela necessidade de combater manipulação do noticiário, graves desvios éticos etc., em função das práticas criminosas dos jornais do grupo de Rupert Murdoch. O primeiro-ministro teve de depor à comissão parlamentar criada para tratar do assunto. Aqui a “CPI do Cachoeira” não conseguiu levar para depor sequer o diretor da sucursal da revista Veja em Brasília. Eu disse Veja? Sim, a revista que era pautada por Cachoeira, e que pertence ao Grupo Abril. Aquele, de Roberto Civita, que oferece um curso em parceria com a ESPM. Aquele curso, dirigido por Eugenio Bucci.
6) “O Ministério das Comunicações faria bem se tomasse a iniciativa e convocasse a sociedade para a elaboração de um novo marco regulatório. Assim, deixaria para trás as chantagens do PT e o imobilismo dos que querem deixar tudo como está (como se fosse possível)”.
Que modo amistoso de persuadir o ministro a mudar de posição: ele “faria bem” se tomasse a iniciativa de convocar a sociedade para elaborar um novo marco regulatório da mídia! Assim, superaria as “chantagens do PT”, bem como o imobilismo dos adversários do PT! O melhor dos mundos, portanto, aguarda o bom ministro Paulo Bernardo se ele seguir o conselho de Bucci. Basta que ele se equilibre sobre o fio da navalha!
O PT não recorre a “chantagens”. Ele apenas se mantém fiel ao seu ideario e ao seu programa histórico. É uma questão de coerência — e coerência não é para todo mundo, não é mesmo? O PT está no governo, tem cargos no governo, mas não “é” o governo. É natural que filiados seus que ocupem cargos públicos tenham que prestar contas ao partido. É democrático que seja assim, do contrário teríamos o império da fisiologia, do pragmatismo, do vale-tudo. Isso pode ser ótimo para a oligarquia, mas péssimo para a sociedade brasileira, para a população em geral. Fica como sugestão de assunto para as aulas do curso de “pós-graduação em jornalismo, com ênfase em direção editorial” da ESPM.
Pedro Pomar é jornalista, editor da Revista Adusp e doutor em ciências da comunicação.