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Por Daniela Frabasile, no Outras Palavras
Marcada em 2011 pela abertura do debate sobre o reconhecimento do Estado Palestino, a Assembleia Geral das Nações Unidas deste ano foi precedida, como de costume, por uma série de encontros menos cercados de glamour e holofotes. Um destes eventos, a reunião de alto nível da ONU sobre doenças crônicas não transmissíveis, apareceu na mídia brasileira apenas devido a um discurso da presidente Dilma Roussef – que defendeu a quebra das patentes farmacêuticas. Apesar de pouco visível, o encontro é parte de um processo de decisões internacionais que pode decidir o futuro de centenas de milhões de pessoas e sacudir uma das indústrias mais ricas e poderosas do mundo: a de medicamentos.
A possível reviravolta está sendo armada há alguns anos. Laboratórios chineses e indianos, que já são responsáveis por boa parte dos remédios consumidos no mundo, deram um passo adiante: estão prestes a dominar os processos tecnológicos que permitem produzir drogas mais sofisticadas. São remédios de última geração e grande potência, fundamentais para tratar doenças como certos tipos de câncer e diabetes. Para disputar o mercado da saúde, os novos produtores anunciam que reduzirão dramaticamente os preços hoje vigentes – o que permitiria que os fármacos chegassem a um público hoje sem acesso a eles. As empresas que dominam a produção mundial (localizadas na América do Norte e Europa) resistem. Sua arma principal não é industrial, mas jurídica. Elas querem evitar que câncer e diabetes sejam tratados pelo direito internacional como epidemias, o que permitiria quebrar patentes e colocaria chineses e indianos em condições de oferecer produtos a governos e consumidores finais em todo o mundo.
O controle que poucas empresas transnacionais exercem sobre a produção de medicamentos apoia-se em dois pilares. O primeiro é tecnológico. As doze maiores empresas da área farmacêutica e de biotecnologia mantiveram, durante décadas, uma clara dianteira sobre todas as demais. Estão todas situadas nos Estados Unidos (Johnson, Pfizer, Abbott, Merck, Eli-Lilly e Bristol-Meyers-Squibb), Suíça (Roche e Novartis), França (Sanofi), Reino Unido (GlaxoSmithKline e Astra) ou Alemanha (Bayer Farmacêutica). Faturam anualmente entre 18 e 60 bilhões de dólares. Afirmam investir em pesquisa e desenvolvimento algo entre 2,5 e 9,5 bilhões de dólares ao ano.
O segundo pilar é simbólico. Envolve leis, marcas, publicidade, imagem. Até o final da década de 1970, quase nenhum país admitia patentes sobre medicamentos. Criada em 1993, a Organização Mundial do Comércio (OMC) tem, entre seus acordos básicos, o TRIPS (Acordo Relativo aos Aspectos do Direito da Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio, na sigla em inglês). Ele obriga os 153 países-membros a proteger a “propriedade intelectual” dos laboratórios por no mínimo vinte anos. Uma vez patenteado por uma empresa, um medicamento não pode ser produzido por nenhuma outra, durante este período. Genéricos são proibidos. A exclusividade permite impor preços leoninos.
Ela esbarra, porém, num obstáculo: em todo o mundo, as sociedades reivindicam com cada vez mais força o acesso aos remédios mais sofisticados, muitas vezes necessários a garantir sua vida. Os Estados, principalmente os mais empobrecidos, têm dificuldades em arcar com os custos desta reivindicação. Um exemplo eloquente: desde o início dos anos 1980, o Brasil assegura, a todos os portadores do vírus HIV, o coquetel de drogas necessário para evitar ou controlar os efeitos da AIDS. Dezenas de nações africanas, onde a epidemia da doença é muito mais aguda, não são capazes de assegurar o mesmo direito.
Desde 2001, surgiu uma brecha para amenizar o problema. Por meio de uma resolução hoje conhecida como “Declaração de Doha”, o OMC flexibilizou as patentes farmacêuticas. Os países-membros têm o direito de quebrá-las, por decisão de seus governos. Só podem fazê-lo, contudo, sob certas condições. Segundo o texto do documento, sempre que for necessário “assegurar o acesso de todos aos medicamentos”. De acordo com uma jurisprudência construída a partir de 2003, porém, tal faculdade só abrangeria situações de emergência nacional ou epidemias de doenças transmissíveis. Mais uma vez, o exemplo mais concreto é o da AIDS. O próprio Brasil serviu-se algumas vezes da Declaração de Doha para quebrar as patentes de alguns dos fármacos que compõem o coquetel, ou para pressionar as corporações que as detêm a reduzir drasticamente os preço praticados.
Embora provoque cerca de 2 milhões de mortes ao ano, 11 mil no Brasil, a AIDS incide sobre uma parcela relativamente reduzida da população mundial. Muito mais presentes são doenças como o câncer, o diabetes, as patologias cardíacas. Há muito, a indústria farmacêutica volta-se para elas. Tem alcançado progressos notáveis em seu tratamento. Obtém lucros astronômicos. A Roche, por exemplo, fatura 19 bilhões de dólares por ano – metade de suas vendas – graças ao Rituxan, Avastin e Herceptin, todos para tratamentos do câncer. As vendas crescem mais rápido nos países emergentes, onde as sociedades têm alcançado novas conquistas no acesso aos medicamentos. Após decisões judiciais, o México passou a dispender 120 milhões de dólares anuais com o Herceptim, capaz de combater cânceres de mama em estágio avançado, ou que resistem a outras drogas.
Oriente médico
Um elemento essencial deste cenário começou a mudar, há alguns anos, conforme conta matéria recente do repórter Gardiner Harris, no New York Times. Laboratórios chineses e indianos parecem ter-se capacitado para entrar no mercado das drogas mais sofisticadas. Não são principiantes. Já produzem, segundo o jornal, cerca de 80% dos ingredientes ativos das drogas consumidas no mundo. O que parecem estar desenvolvendo agora é a tecnologia necessária para sintetizar os medicamentos mais potentes e caros.
Além de sacudir o mercado farmacêutico mundial, este possível passo adiante pode revolucionar o acesso das populações a medicamentos necessários para salvar dezenas de milhões de vidas. As indústrias de remédios chinesas e indianas produzem e vendem muito mais barato que suas congêneres norte-americanas e europeias. Seja por motivos estratégicos (atender a políticas de saúde de seus governos, dos quais são muito dependentes), ou por estratégias de negócio (conquistar fatias do mercado mundial hoje em poder das companhias líderes), elas têm derrubado as cotações. Há uma década, o presidente da Cipla, a gigante farmacêutica indiana, deixou atônitos e incrédulos os especialistas do setor ao anunciar que rebaixaria o preço do coquetel anti-AIDS a 1 dólar por dia. Hoje, a Cipla cobra, pelas drogas, US$ 0,20 ao dia – o que tornou o tratamento acessível a cerca de 6 milhões de pessoas, na África e Ásia.
Se o que chineses e indianos anunciam for verdadeiro, faltará apenas um obstáculo para mudar o mercado mundial de medicamentos e o acesso das populações à saúde: será preciso ampliar a janela aberta pela OMC em 2001. Ela precisa permitir também que as patentes sejam quebradas por Estados dispostos a assegurar o direito à Saúde também em casos de doenças não transmissíveis – responsáveis por 63% dos óbitos mundiais em 2008 (72% no Brasil).
É esta a batalha travada na reunião da ONU sobre doenças crônicas, da qual a presidente Dilma participou. O encontro não foi conclusivo. Segundo prevê James Love, da ONG Knowledge Ecology International (Kei), num artigo para a Al Jazeerra, a disputa deverá ser longa, acirrada e espalhar-se por distintos fóruns e instituições internacionais.
Em defesa de suas corporações, os governos dos Estados Unidos e a União Europeia aferram-se ao Trips e às normas rígidas da OMC. Sua estratégia prevê incluir, nos tratados comerciais firmados com países mais pobres, cláusulas que tornam ainda mais draconiana a proteção da “propriedade intelectual”.
Em contrapartida, um número cada vez maior de organizações da sociedade civil, governos e mesmo empresas do Sul invocará o direito à Saúde, e tentará torná-lo real em seus espaços nacionais e nos fóruns da ONU. Na Índia, já tramitam pedidos de quebra compulsória das patentes sobre diversos remédios. No Brasil, a fala de Dilma Rousseff na ONU é encorajadora – embora ainda não tenha se desdobrado em fatos mais concretos. Mas as manifestações não se limitarão aos BRICS. Ainda em 2009, conta James Love, Bolívia, Bangladesh e Suriname propuseram que a ONU considerasse “formas inteiramente novas” de custear a pesquisa de drogas contra o câncer.
Em seu artigo, Love não desconsidera a importância da pesquisa científica, nem de assegurar seu financiamento. Propõe que se quebre uma relação perversa e antinatural. A inovação tecnológica, diz ele, tem de estar associada à democratização do acesso – nunca opor-se a ela. As políticas de comércio internacional precisam promover os dois objetivos simultaneamente, ao contrário do que ocorre hoje. E, por meio de lutas e pressões sociais, os direitos humanos têm se ocupar um papel central, nas políticas de patentes.