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Por Flamarion Maués
Já há certo tempo vem ficando muito clara, às vezes mesmo explícita, a intimidade entre donos de veículos de comunicação da grande imprensa, jornalistas em posição de comando nesses veículos e setores políticos conservadores e de direita no Brasil. É lógico que isso não é uma novidade na nossa história, ao contrário, vem de longe.
Neste artigo, apresento um dos momentos em que essa intimidade e colaboração foi mais direta – durante a primeira etapa do governo Geisel, entre 1974 e 1977. Para isso utilizo informações da pesquisa realizada por Celina Rabello Duarte.
Em entrevista que me concedeu sobre o seu livro Tortura: A história da repressão política no Brasil, publicado em julho de 1979 pela editora Global, o jornalista Antonio Calos Fon dizia: “O Golbery praticamente pautava a imprensa brasileira na época, especialmente a Veja. Na verdade, a condição sine qua non para a contratação dos editores de política na época era saber se se relacionavam bem com ele. Tem muito medalhão da imprensa hoje que começou assim”. Fon se refere a Golbery do Couto e Silva, ministro-chefe do Gabinete Civil durante todo o governo Geisel (1974-1979) e parte do governo Figueiredo (até o começo de agosto de 1981), e um dos mais importantes formuladores das decisões políticas do período militar, principalmente nos anos 1970. E o momento do qual ele fala é o início da abertura política, no começo do governo Geilsel (1974-1979).
Essa estreita relação entre alguns dos maiores veículos de comunicação do país e o principal articulador político do governo ditatorial da época foi muito bem estudada e documentada no trabalho da cientista política Celina Rabello Duarte, em sua dissertação de mestrado Imprensa e redemocratização no Brasil: Um estudo de duas conjunturas, 1945 e 1974-1978, defendida na PUC-SP em 1987.
Nesse trabalho a autora mostra, a partir de entrevistas com vários jornalistas dos mais importantes veículos de comunicação do país nos anos 1970, como a grande imprensa teve um papel de destaque no processo de abertura política iniciado no governo Geisel. Para o novo governo, era interessante uma certa liberalização da imprensa, com o fim da censura nos principais veículos de comunicação, desde que isso se desse dentro dos marcos do projeto de abertura proposto. Dessa forma, boa parte da grande imprensa foi, de certa forma, instrumentalizada pelos interesses políticos do grupo de Geisel – e até mesmo se engajou nesse projeto –, cuja principal cabeça pensante era o general Golbery.
Segundo Celina Rabello Duarte, “Antes de [Geisel] tomar posse [em 1974], seus principais assessores reuniram-se por diversas vezes com jornalistas proeminentes e donos de jornais, a quem apresentavam o projeto político do novo governo e garantiam que a censura seria brevemente suspensa” (p. 90). Estes assessores eram o general Golbery, o ministro da Justiça Armando Falcão, o major Heitor Ferreira de Aquino (assistente de Golbery de 1964 a 1967 no SNI e secretário particular de Geisel de 1972 a 1979, na Petrobrás e na Presidência da República) e Humberto Barreto (amigo de Geisel e seu secretário de Imprensa de 1974 a 1977).
Sempre segundo Celina Duarte, “Dos contatos realizados entre os assessores mais diretos do general Geisel e os homens de imprensa, formou-se, no Rio de Janeiro e em São Paulo, um grupo de jornalistas influentes, completamente engajado no projeto político do governo. Esse grupo detinha especial influência nos jornais O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil, e nas revistas Veja e IstoÉ. Esses jornalistas chegavam a participar da elaboração de projetos e estratégias políticas junto com o grupo palaciano” (p. 101).
A simpatia e a adesão da imprensa se explicavam pelo fato de o governo Geisel defender um projeto de liberalização política, se comparado ao governo Médici – ainda que esse não fosse o único fator, nem talvez o principal. “Entre 1976 e 1977 quando a ‘linha dura’ passa a pressionar mais abertamente, a simpatia vai se transformando cada vez mais em apoio. Havia naquele momento um sentimento de que era importante defender o projeto de distensão contra aqueles setores que pretendiam o endurecimento do regime”, continua Duarte (p. 102).
“O ponto nevrálgico dessa disputa [entre a linha dura e o grupo Geisel] estava na questão dos direitos humanos. Para cumprir o projeto de distensão era imprescindível coibir os abusos nessa área, pois não seria possível a coexistência de ambos. Ao mesmo tempo, a divulgação deles enfraquecia a linha militar radical” (Duarte, p. 105).
A morte sob tortura do jornalista Vladimir Herzog nas dependências do DOI-CODI de São Paulo em 25 de outubro de 1975 agravou a situação de disputa dentro do governo e deixou claro para aqueles setores da imprensa que “o governo Geisel e o projeto de distensão estavam seriamente ameaçados por um golpe militar de direita” (Duarte, p. 109). Esse raciocínio se baseava na idéia de que o assassinato de Herzog faria parte de um movimento dos setores mais radicais do regime de desafio ao projeto de abertura, ou seja, de tentar fazer prevalecer as posições dos que defendiam a manutenção do aparelho repressivo e de cerceamento estrito à oposição. É nesse momento que se “estabeleceu uma aliança tácita entre jornalistas e empresários da imprensa e destes com o grupo Geisel. [...] É a partir do caso Herzog que a imprensa passa a funcionar, para o governo, como uma contra-operação, um fator de equilíbrio para neutralizar as áreas mais radicais do sistema” (Duarte, p. 108 e 110).
“Não resta dúvida de que a maioria dos órgãos de imprensa soube se posicionar nos meandros desse conflito. Nos momentos de liberdade, souberam investir na questão dos direitos humanos e na necessidade de redemocratização do regime. E esta investida era, pelo menos naquele momento, oportuna para o grupo Geisel. Segundo opinião de Walder de Góes, em nossa entrevista, muitas das denúncias de arbitrariedades dos órgãos de segurança teriam sido estimuladas por Geisel ‘justamente para lhe permitir uma ação mais desenvolta contra esses bolsões radicais’” (Duarte, p. 116).
Celina Duarte conclui que “A imprensa liberalizada cumpriu um papel especialmente eficiente, enquanto fator neutralizador dos setores de ‘linha dura’ na disputa pelo poder. Ao noticiar e divulgar movimentações desses setores, impediu a formação de esquemas golpistas. Ao revelar as violências cometidas pelos órgãos de segurança, logrou sensibilizar a opinião pública em apoio ao grupo Geisel e a seu projeto político em contraposição às intenções continuístas daqueles setores militares” (Duarte, p. 88-89). Este último aspecto da conclusão de Duarte deve ser muito relativizado, uma vez que parece claro que o grupo Geisel também tinha intenções continuístas.
Pode-se até considerar que a causa defendida por estes veículos de comunicação em parceria com Golbery e Geisel era uma boa causa, ou seja, enfraquecer os setores mais reacionários dos militares e apoiar a abertura política. Mas, ao mesmo tempo, tal relação mostra uma intimidade e proximidade que colocam em xeque qualquer tipo de independência dessa mesma imprensa em relação ao governo da época. E deixam claro que a ação da grande imprensa é sempre muito direcionada e interessada, voltada para objetivos bem determinados.
PS: A dissertação de Celina Duarte trabalha com a interpretação de que a imprensa foi um dos elementos da disputa entre “duros” e “moderados” no governo Geisel. Mas é importante assinalar que existem discussões que apontam as insuficiências dessa abordagem (“duros” X “moderados”) para entender as disputas de poder durante a ditadura, mas que não cabem no espaço deste artigo. No caso do trabalho de Duarte, parece-me que, independentemente das gestões governo/imprensa encaixarem-se de fato nessa disputa, as informações que ele revela deixam claro que houve uma continuada articulação para que setores da imprensa atuassem de modo favorável ao grupo de Geisel nas disputas internas de governo.
Fontes:
DUARTE, Celina Rabello. Imprensa e redemocratização no Brasil: Um estudo de duas conjunturas, 1945 e 1974-1978. Dissertação de mestrado, PUC-SP, 1987.
MAUÉS, Flamarion. “A tortura denunciada sem meias palavras: um livro expõe o aparelho repressivo da ditadura”. In: SANTOS, Cecília MacDowell; TELES, Edson Luís de Almeida e TELES, Janaina de Almeida (Orgs.). Desarquivando a Ditadura: memória e Justiça no Brasil. São Paulo, Hucitec, p. 110-134.
KUCINSKI, Bernardo. A síndrome da antena parabólica: ética no jornalismo brasileiro. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 1998.
Flamarion Maués é editor de livros e historiador.