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Reproduzo o belo texto de Carlos Eugênio Paz - sobre a mania brasileira de acreditar que, nessa terra, não há lutadores de verdade. Somos todos Macunaíma? É uma forma de dizer a todos nós: relaxe, aqui nada vale nada.
Ainda bem que isso não é verdade. É só mais uma estratégia ideológica. Claro que Macunaíma é uma obra de arte instigante. Carlos Eugênio não fala mal do livro. Mas mostra como o uso que dele se faz ajuda a construir uma idéia depreciativa do brasileiro.
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AMIANUCAM
Sempre me incomodou a sina do herói sem nenhum caráter.
Fui criado ouvindo falar de Ganga Zumba e de Zumbi. A família Sarmento, de minha mãe, vem lá de União dos Palmares, no sopé da Serra da Barriga, onde se formou o Quilombo que durou mais de seis décadas resistindo aos portugueses. Pequenino, ouvia em União histórias de lutas e resistências. Histórias que povoavam a imaginação infantil, principalmente à noitinha, deitado, esperando o sono, observando o candeeiro dar vida às ranhuras e buracos das paredes rústicas, com sua luz bruxuleante. Rachaduras viravam trincheiras; riscos, guerreiros em movimento de ataque e defesa; manchas, caravanas de negociantes dos tempos de paz e diplomacia.
Mais tarde, meu pai inventou o Menino de Bagdá. Transportava-se no tempo, fazendo-se presente onde alguém precisasse de seu apoio nas lutas contra os mais fortes. Essa liberdade de movimento servia também para ajudar papai quando, vencido pelo sono, parava de contar e eu ou minha irmã reclamávamos. Ele recomeçava em outro século, um novo continente, e malvados diferentes. Não tinha problema, o Menino de Bagdá estava pronto para correr de uma para outra aventura, sem quebras incômodas de continuidade.
Um dia conheci Macunaíma. Que descoberta! Um herói brasileiro, que vivia como gente que eu conhecia. Meu tio Diogo era um deles. Livro cheio de humor, instigante, quebra as expectativas, rompe com a realidade, um lindo exercício de literatura.
Pois é, um belo livro. Uma grande obra. Mas o que é que me incomoda? Será a tendência a transformar o caráter do herói sem nenhum caráter em caráter do povo brasileiro? Deve ser. Mas a quem interessa isso?
A quem interessa que os brasileiros se convençam que somos um povo que só pode viver uma grande piada, cheia de preconceitos étnicos, de gênero, de aparência, nacionalidade e outros. Sendo uma piada, não seremos uma nação. Não saberemos nem resistir ao opressor, pois nosso herói prefere levar vida mansa. Como dar a vida por uma causa, se não temos nenhum caráter e usamos nossos saberes e talentos para levar vantagem?
Ainda bem que não é assim. Zumbi, Tiradentes, João Cândido, Antonio Conselheiro, Carlos Marighella, Joaquim Câmara Ferreira, Mário Alves, Apolônio de Carvalho, Gregório Bezerra, Luiz Carlos Prestes, Carlos Lamarca, Olga Benário, Ana Maria Nacinovic, Iara Iavelberg, Aurora Nascimento Furtado, Soledad Barret Viedma, Sonia Moraes, Ísis Dias de Oliveira, Gastone Lúcia Beltrão, Maria Augusta Thomaz e milhares de outros, contam uma história diferente.
Contam uma história de lutas, de propostas, de construção, de resistência, de capacidade de adaptação, de criatividade e tolerância. Os brasileiros resistiram desde sempre.
Então, vamos deixar Macunaíma no seu lugar de grande livro, que deve ser lido e usufruído, mas não vamos cair na armadilha de propagar esse mito de que o povo brasileiro é um povo sem nenhum caráter.
Na vida, somos o povo de Amianucam, herói de muito caráter, daqueles que dão a vida, que lutam até a morte pela liberdade, pela igualdade, pela fraternidade, e pelo socialismo. Lutam para abolir a exploração do homem pelo homem, é coisa séria, digna do povo brasileiro. Povo Amianucam.
P.S.: Carlos Eugênio lutou contra a ditadura, na ALN, e agora é candidato a deputado federal no Rio de Janeiro.