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Publico abaixo o relato de Ricardo Ferraz, um brasileiro que acompanhou de perto a batalha pela aprovação do casamento gay na Argentina.
Acompanhou como observador: foi passar as férias em Buenos Aires com a família, e mandou-nos o texto que se segue.
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A batalha contra a hipocrisia
por Ricardo Ferraz
Vejo na televisão a aglomeração em frente ao Congresso Nacional argentino. Faz frio em Buenos Aires, cerca de 3 graus. Mesmo assim, milhares de pessoas saíram às ruas para apoiar o projeto de lei que permite a igualdade civil entre pessoas do mesmo sexo. É uma resposta aos setores mais conservadores da sociedade argentina que, no dia anterior à aprovação do projeto, ganharam as ruas da capital convocados pela Igreja. Eram soldados em uma batalha que os bispos convencionaram chamar de uma “guerra contra Deus”.
Felizmente, para a Argentina, e mais ainda para a América Latina, eles perderam. Saem derrotados não só porque gays passam a ter os mesmos direitos civis que os heterosssexuais (podem casar-se, tem direito à herança e a adotar crianças), mas sim porque essa espécie de “guerra santa” deixou exposta a verdadeira cara dos setores mais conservadores da sociedade argentina – que não diferem muito da direita do resto do continente americano ao sul do equador.
Durante toda a semana, a sociedade esteve totalmente tomada pelo debate do projeto de lei. Na televisão, em todos os programas, dos mais populares aos mais elitistas, viam-se pessoas discutindo o casamento igualitário, o termo politicamente correto adotado por aqui da união civil entre homossexuais. A direita destilou todo tipo de preconceito. Um deputado ultra conservador da província de Salta (ao norte) declarou: “não deixo meu filho ir à casa de um casal gay porque na hora de dormir um deles pode aparecer de pijama com um pompom rosa na cabeça”. Em outro programa, um dos mais tradicionais da Argentina, em que uma espécie de Hebe Camargo local recebe os convidados para um almoço, a apresentadora pergunta a um artista assumidamente homossexual: “Você não tem medo que um casal gay que adota uma criança, no futuro, possa estuprá-lo?”. A representante da Opus Dei, uma advogada que defende representantes do governo militar, faz o discurso do “isso não é normal, Deus uniu os homens e as mulheres, não os de mesmo sexo”.
Por outro lado, na TV Pública, criada e mantida pelo governo Kirchner, um programa de debates, chamado “6, 7 e 8”, edita tudo e resolve dar nome aos bois, colocando os que são contra a medida como inimigos da pátria. “Saiba quem é quem” gritam os letreiros no rodapé da tela de televisão. “Esse deputado que roubou terra dos índios para plantar soja é contra o casamento gay”. Em outra nota: “esse representante dos ruralistas que apoiou a ditadura é contra os direitos igualitários”. O repórter de um programa do tipo CQC ouve de uma mulher contra a medida que, se ela fosse aprovada, daqui a pouco se uniriam pessoas e cachorros. O bem humorado repórter resolveu ouvir a opinião do cachorro, que sequer latiu.
Preconceito, piadas e radicalismos à parte, o que as pessoas dizem pelas ruas (na maioria das vezes, conversei com pessoas que eram favoráveis ao projeto) é que a Igreja aprova tudo o que acontece às escondidas, inclusive os casos de pedofilia nas barbas do Vaticano, mas se revolta quando a moral cristã é questionada às claras. Tremenda hipocrisia. Ganhou vulto no país o depoimento de um padre a favor do casamento gay, cuja irmã é lésbica e vive com outra mulher, e que foi proibido pela Santa Sé de realizar missas. O representante dos Putos Peronistas (sim eles existem) foi à TV dizer que a decisão era absurda, uma vez que outro padre, acusado de ser um torturador durante a ditadura militar, continuava a pregar.
Em outras palavras, a aprovação desse projeto ilustra bem a polarização política que tomou conta da Argentina. Ainda que os temas se confundam, e que tortura e casamento gay sejam coisas absolutamente distintas, o país avança rumo a um caminho que até pouco tempo seria impensável na America Latina.
Tal polarização tem outras conseqüências, inclusive econômicas, e é freqüentemente contestada por jornalistas brasileiros que a colocam como sendo prejudicial, ao longo prazo, para o país. Confesso que desembarquei na Argentina para férias com a família (cometi o pecado aos olhos brasileiros de me apaixonar por uma argentina com quem tenho dois filhos) tendo o mesmo pensamento. Mas me pergunto, cada vez mais, se prefiro um país onde as coisas são claras, ou um país onde há uma aparente conciliação entre interesses conflitantes e que mudou muito pouco nos últimos 500 anos.
Não tenho a respostas imediata, mas ontem, enquanto jantávamos, meu cunhado (hétero) ligou para o meu sogro dizendo que tinha saído do trabalho e se dirigia ao Congresso para a vigília pela aprovação do casamento gay. Senti uma certa inveja. Isso no Brasil raramente aconteceria. Preferimos os lobbys escusos em Brasília e a sensação, obviamente falsa, de que em nosso país todos convivemos bem com as diferenças.