Sobre a cultura Hacker Com os desdobramentos do caso #VazaJato, a expressão “hacker” rapidamente ocupou as páginas dos principais jornais do Brasil. Com uma conotação abertamente pejorativa e de modo equivocado, os hackers ou a atividade de “hackear alguém” passaram a ser descritos como sinônimo de “invasão de privacidade” e “roubo de dados” — em suma: práticas tecnológicas que estariam fora da lei. Mas o fato é que o termo “hacker” nada tem a ver com a criminalidade.
Inscreva-se no nosso Canal do YouTube, ative o sininho e passe a assistir ao nosso conteúdo exclusivoMundialmente conhecida e celebrada, “a cultura Hacker” está associada à inteligência e perspicácia ao lidar com as tecnologias digitais. O raciocínio e a criatividade dos hacker podem proporcionar mais controle humano sobre os processos sociais que dependem — cada vez mais — de tecnologias digitais. Não por acaso, um famoso lema da cultura hacker diz que “O acesso ao computador, e qualquer coisa que possa ensinar algo sobre como o mundo funciona, deve ser ilimitado e total”.
Ao invés de “roubar nossas senhas e dados” os hackers pensam um mundo onde exista mais autonomia das pessoas diante da tecnologia. Suas práticas estão baseadas, por exemplo, no uso avançado de técnicas computacionais para extrair, tratar, dar significado aos dados, divulgando, muitas vezes com arte, bases de dados públicas e/ou abertas. O propósito dos hacker é fazer com que amplos segmentos sociais possam tomar conhecimentos de riscos e oportunidades que não estão normalmente visíveis a quem não faz parte do mainstream.
No Brasil existem vários coletivos e inciativas hackers. O Dadoscope pretende explorar algumas delas. Numa tentativa de “hackear os próprios hackers”, a nossa ideia é visitar o que está sendo feito por eles, buscar os dados que eles trabalharam e, valorizando o que já fizeram, dar um novo significado aos dados.
Apresentando o Robotox A primeira visita hacker do Dadoscope é ao Robotox. Trata-se de um robô do twitter que avisa toda vez que um novo agrotóxico é liberado no Diário Oficial da União (D.O.U). Esse é um projeto em conjunto da Agência Pública e da Repórter Brasil. A rotina do robô de todo dia buscar identificar se há novos agrotóxicos liberados inspirou o título do nosso artigo. Esse é o nosso primeiro hack sobre o Robotox.
Para além de inspirar o nome do artigo, o Robotox atiça a curiosidade com os dados que divulga. Cada vez que há uma liberação de agrotóxico, o robô extrai do D.O.U as seguintes informações: fabricante do produto, nome comercial do produto, classificação toxicológica e aplicação, conforme pode ser visto na Figura 1.
Esses informações dão material para vários estudos e alguns deles já são divulgados nessa página que se associa ao Robotox. Observando esses estudos percebemos algumas lacunas, principalmente relacionadas às aplicações dos agrotóxicos. Resolvemos então fazer análises exploratórias sobre esse tema.
Metodologia Utilizando a API do Twitter, baixamos todos os posts do Robotox desde que foi criado. Selecionamos aqueles que dizem respeito à divulgação de liberação de agrotóxicos no D.O.U. Após isso fizemos uma série de tratamento e limpeza de dados que permitiu deixar mais clara a associação entre os produtos liberados e as culturas agrícolas. Daí partimos para as análises que estão mostradas logo abaixo.
A página de Twitter do Robotox indica que foram liberados 290 produtos agrotóxicos no ano de 2019. O robô começou a funcionar em final de Abril e por isso alguns produtos não foram capturados do D.O.U. Por isso a amostra da análise será de 262 produtos, a quantidade de produtos presentes no Twitter até o dia 10/08/2019, data em que este artigo está sendo redigido.
Análise exploratória sobre as culturas afetadas pelos novos produtos A primeira análise é a quantidade de produtos para cada um dos quatro tipos possíveis de nível de toxicidade que são informados no D.O.U. Vale salientar aqui que esse nível de toxicidade refere-se ao risco a que está exposto os trabalhadores que manipulam diretamente os produtos nas lavouras. A Figura 2 traz a informação dessa distribuição.
Observa-se na Figura 2 que produtos Moderadamente Tóxicos foram os mais liberados, seguidos pelos extremamente tóxicos. Esse gráfico pode trazer um certo alívio ao trabalhador rural já que pode sinalizar um padrão em que a exposição ao risco toxicológico devido aos novos produtos não é das mais elevadas. Ocorre, porém, que um outro dado que é divulgado pelo D.O.U pode diminuir esse alívio. Trata-se das aplicações a que se destinam os produtos.
No tratamento da informação relacionada a aplicação dos produtos descobriu-se que várias liberações, na verdade o maior número, relacionam-se a produtos técnicos. Para esse tipo de liberação há 123 registros. Esses produtos estão rotulados de acordo com a classificação de risco, mas não serão objetos de análises deste artigo. Aqui o foco será apenas na destinação final dos produtos, ou seja nas culturas. A Figura 3 mostra o alcance dos níveis de toxicidade sobre diversas culturas presentes no Brasil.
No total 74 culturas diferentes são mencionadas nos conjuntos de liberações de agrotóxicos tratadas por este artigo. Cada produto dessa análise pode estar associado a uma ou mais culturas. Por sua vez, cada uma dessas culturas pode ser afetada por uma ou mais classes de toxicidade. A Figura 3 revela que a classe de produtos extremamente tóxicos é que afeta mais culturas, ultrapassando a classe moderadamente tóxico que é a que predomina no número de produtos liberados.
Pela Figura 3, o alívio do trabalhador do campo pode ter sido bastante impactado se a sua lavoura estiver listada entre as que estão sujeitas aos novos produtos extremamente tóxicos. A figura 4 mostra as culturas com mais de dez produtos novos associados, dando destaque à distribuição do nível de toxicidade.
Pela Figura 4 observa-se que a soja é a cultura a que se destina a maior parte dos novos produtos liberados, seguida de perto por algodão, milho e café. Observa-se que, de um modo geral, há uma distribuição do nível de toxicidade das culturas entre as classes de produtos extremamente tóxico e moderadamente tóxico. Nas culturas com maior número de produtos associados parece haver uma leve predominância da classe moderadamente tóxico. Por outro lado, o gráfico parece sinalizar que nos outros produtos predomina os extremamente tóxicos. Ainda na Figura 4, destaca-se que a classe pouco tóxico concentra-se sobre os produtos direcionados a alvos biológicos e não a culturas específicas. Para deixar mais claro que culturas são mais impactadas de acordo com o nível de toxicidade, elaborou-se a Figura 5.
A Figura 5 reforça o entendimento que já havia sido sinalizado na figura 4. Percebe-se que das dez culturas com mais produtos associados, feijão, batata, milho e soja não estão com maioria na classe Moderadamente tóxico. Essas quatro culturas juntam-se às com menor número de produtos associados, com exceção do melão, na explicação do maior impacto sobre culturas dos produtos de classe extremamente tóxico.
As informações contidas na Figura 5 tornam-se mais relevantes quando se tem acesso aos dados abertos do levantamento sistemático de produção agrícola feito pelo IBGE. Neste levantamento, a cultura de soja, que é a campeã em destinação de novos produtos e também é a que é mais associada à classe extremamente tóxico, aparece como a de maior área plantada. Na safra de 2018 esse número correspondeu a quase 35 milhões de hectares. Se considerarmos as áreas do países da Europa, esse número é quase equivalente à da Alemanha e é superior a 43 países daquele continente. Além disso, se somarmos à área de soja a das duas safras de milho, outra cultura em que prepondera a classe extremamente tóxico, teremos uma área de aproximadamente 51 milhões de hectares que foi utilizada por essas duas culturas em 2018. Aí já está se falando de uma área maior que a Espanha, que é o sétimo maior país europeu.
Para que lembremos o que significa aproximadamente uma Alemanha dentro do espaço territorial brasileiro, segue a Figura 6.
A Figura 6, tomada emprestada da revista Outras Palavras, mostra a fronteira agrícola da soja no Brasil no ano de 2015. Nota-se que naquele ano estava espalhada por praticamente todo o Centro-Oeste e Sul, por grandes áreas do Nordeste e Sudeste, além de avançar por territórios amplos da região Norte.
Essas dimensões assustadoras dão um alerta para a necessidade de se entender como se dá a fiscalização dos processos produtivos de espalhamento de agrotóxico no campo. Considerando que os riscos analisados neste texto referem-se aos que estão submetido ao trabalhador do campo, vale resgatar essa reportagem e essa outra que tratam de ações de indenização que recaíram sobre a indústria de agrotóxicos por contaminação de trabalhadores que manipularam os seus produtos. Vale lembrar ainda que o risco não se resume apenas aos trabalhadores do campo, há que se considerar ainda os riscos ambientais e dos consumidores dentro da cadeia produtiva da agricultura até chegar no nosso prato de feijão com arroz e carne. Esses riscos, conforme será dito mais adiante podem ser objetos de novos artigos do Dadoscope.
Conclusões Os números enormes que são apresentados neste texto reforçam a necessidade de inciativas de controle social como a do Robotox. Servem como alerta para o acompanhamento das políticas públicas de fiscalização trabalhista e agropecuária.
O Robotox mostra um caminho a ser seguido por outras iniciativas Hackers, quais sejam, produzir dados e conteúdo. Os diversos setores da sociedade civil devem se apropriar do que é divulgado para a partir daí pautar novas pesquisas, pressionar governo, propor legislações e gerar novas ressignificações.
Apesar do fato de termos conseguido processar informações interessantes e reveladoras sobre os desdobramentos quantitativos das liberações dos novos agrotóxicos, o Robotox poderia ser ainda mais útil se fornecesse mais dados. A liberação dos novos agrotóxicos pelo D.O.U traz outros campos interessantes de serem trabalhados, principalmente os que tratam dos produtos químicos e do risco ambiental. Essa limitação do robô acabou sendo também uma limitação para o nosso trabalho. Em breve um novo estudo pode incluir esses novos dados. Possivelmente um dos focos pode ser justamente como a Figura 6 dialoga com os riscos ambientais das fronteiras agrícolas sobre tesouros naturais brasileiros tais como aquíferos, rios e florestas.
Além desse texto, estamos produzindo um dashboard para acompanhar as liberações. O produto está sendo evoluído neste endereço. A ideia é que os painéis que serão disponibilizados possam apoiar a construção de novos estudos, facilitar o trabalho de controle social e até mesmo ajudar a impulsionar a cultura Hacker associada à Ciência de Dados. Visite o endereço do nosso produto ou siga-nos no twitter utilizando os links abaixo para saber novidades sobre a evolução das nossas visualizações dinâmicas.
Sobre os autores Charles Novaes de Santana: Cientista da computação, mestre e doutor em mudanças climáticas, com experiência no uso de técnicas de inteligência artificial e de aprendizado estatístico para responder perguntas interdisciplinares. É co-fundador de DataSCOUT, apaixonado por fractais, redes complexas, e por identificar padrões escondidos em amontoados de dados.
Tarssio Barreto: Estudante de doutorado do Programa de Engenharia Industrial da Universidade Federal da Bahia. Dedica o seu tempo ao aprendizado de máquina com particular interesse na interpretabilidade de modelos black box e qualquer desafio que lhe tire o sono!
Fernando Barbalho — Doutor em Administração pela UnB (2014). É cientista de dados no Tesouro Nacional. Pesquisa e implementa produtos para transparência no setor público brasileiro. Usa R nos finais de semana para investigar perguntas que fogem às finanças públicas.
Leonardo F. Nascimento — Doutor em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos — IESP/UERJ (2013). Pesquisa temas relacionados à sociologia digital e aos métodos digitais de pesquisa. Atualmente é professor do Instituto de Ciência, Tecnologia e Inovação da UFBA.