O Pequeno e Irônico Dicionário para Aspirantes ao Mérito-empreendedorismo

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Ok, vocês venceram! Por isso, o “Cinegnose” vai dar uma ajuda aos aspirantes e adeptos da nova religião do mérito-empreendedorismo (meritocratas + empreendedores) desse admirável mundo novo, no qual maquininhas de crédito e débito substituíram a Carteira de Trabalho por meio da inabalável fé de que, um dia, a força de trabalho se transubstanciará em Capital. Para entender esse Mistério da transubstanciação de uma categoria econômica em outra (que se equivale ao da Santíssima Trindade ou da própria redenção de Cristo) é urgente dominar o jargão hermético dessa seita – “foco”, “nicho”, “aplicativo”, “sustentabilidade”, “agregar”, “gestão”, “inteligência” entre outros termos aparentemente inescrutáveis. Bem vindo à Metafísica da Teologia desses novos tempos, através do “Pequeno e Irônico Dicionário para Aspirantes ao Mérito-Empreendedorismo”.

Obs.: o símbolo (?) nos verbetes representa que o termo é abordado especificamente em verbete próprio.

-A-

Acelerar: mérito é uma questão de performance. Melhor que a velocidade é a aceleração: quintessência do desempenho, espécie de marketing pessoal do cara bem sucedido – no final de semana acelerar uma Kawasaki Ninja na Rodovia Castelo Branco trajando um conjunto Fox Racing como definitiva prova de mérito. Não basta ser bem sucedido, é preciso acelerar. Mesmo que de fato não seja um vencedor, mas, afinal, na competição meritocrática o efeito (ou a aparência) antecede a causa. Como nos mostra diariamente o prefeito mérito-empreendedor João Doria Jr. “Acelera São Paulo!”, o slogan político que presta homenagem a esse verbo transitivo. 
Agregar: O efeito é fundamental para o mérito-empreendedor. Por isso agregar é a essência do trabalho imaginário dele: agregar valor é mais importante do que o valor do produto em si. Gestão metafísica mercadológica – uma bike é uma bike: mas se agregar o valor do “menos é mais” vira bike fixa... ou, então, retrô. Uma coxinha é uma coxinha. Mas se for recheada com frango orgânico através de parceria(?) com um produtor sustentável (vide verbete “Sustentabilidade”) então agregou-se valor: foi gourmetizado.
Aplicativo:  é o ícone da sub-religião dos gadgets. Pode ser tanto a ideia do empreendedor(?), a Startup ou o produto consumido pelos adeptos dessa nova religião. Aplicativo funciona como uma varinha de condão, capaz de sobrepor-se, como fosse uma camada de realidade aumentada, sobre o caos e o imprevisível, transformando ícones e botões em aparência de controle sobre a vida. É também a varinha de condão que promete solucionar os problemas públicos que o Estado ineficiente não resolve: aplicativo de saúde, aplicativo de transporte público etc. Sem Estado e parida pela genialidade de empreendedores, é limpa da corrupção. Por que é tecnológica. Tão limpa como uma bitcoin nas plataformas tecnológicas em transações econômicas mágicas na sombra do espaço digital.

 

-B-

Brasil: sempre com grandes oportunidades  e o eterno país do futuro. Não fosse a corrupção e a baixa consciência empreendedora, seria um lugar de primeiro mundo como Miami(?).

-C-

Crise: oportunidade. Desde que você esteja focado no nicho(?) certo. Por isso, a crise atinge sempre o outro, mas nunca você próprio. Crise só existe no Governo e na Política. No mercado(?), crise é oportunidade para se reinventar(?), sair da zona de conforto(?), ser mais focado (vide “Foco”), empreendedor(?). O leitor já ouviu falar que a palavra “crise”, em chinês, significa “risco” e  “oportunidade”? Se não, precisa ouvir mais palestras motivacionais para mérito-empreendedores.
Consumidor engajado: é aquele que vive no nicho que será descoberto pela mente focada do empreendedor(?), fazendo-o superar a descontinuidade (vide “Descontinuar”) dos lucros provocada pela crise(?). Consumidor engajado é o consumidor que não consome o produto em si, mas o que foi agregado ao produto (vide verbete “Agregar”).
Cool: expressão de origem inglesa que designa valor agregado satisfatório que vira um hype no mercado. Aquilo que merece ter o cardinal “#” (Hashtag(?) e vira trend topics. Tudo muito “cool”!

 

-D-

Desafios: sempre no plural. Aquilo que faz você sair da zona do conforto(?). Como mantra neurolinguístico ou de positividade da autoajuda, a negatividade das crises (o desemprego, a demissão, o fracasso, a falência do empreendimento) será vista positivamente como desafios para intensificar o seu poder de foco. Lembre-se: crise(?)  tem a ver com Governo, Política e Economia. No mercado chama-se desafios.
Descontinuar: Nenhum empreendimento fali; nada acaba, termina, cessa. Tudo é apenas descontinuado – enquanto “acabar” significa finalizar, “descontinuar” significa interrupção, variação. Assim como o gerundismo, almeja criar um efeito de processo ou de momentos de variações num continuo. Não há História ou Sociedade que crescem e morrem no Tempo. Apenas um eterno presente extenso. Será que morrer também é decontinuar? 
Desempregado: Empreendedor(?).
Disparar: em épocas menos meritocráticas falava-se “vou enviar um e-mail”. Agora, diz-se “disparar e-mails”. Termo que surgiu dos tempos do famigerado E-mail Marketing cujos programas disparavam e-mails 24 horas por dia. Por isso o verbo disparar passou a conotar a intensidade do trabalho de um gestor ocupado. Lembre-se sempre disso: para o mérito-empreendedor o efeito antecede a causa. 

-E-

Empreendedorismo: corrente de pensamento místico-econômica que acredita no milagre da transubstanciação secularizada – se você estiver focado suficientemente a força de trabalho se converterá em Capital.
Empreendedor: crente e militante do pensamento místico-econômico do Empreendedorismo(?).
Então... É assim...: expressão fática utilizada bastante por gestores (vide verbete “Gestor”) e empreendedores. Muito utilizada em momentos onde o gestor deve justificar ao colaborador o porquê dele se tornar, em futuro breve, mais um empreendedor(?) - vide o verbete "Desempregado". Desprovido ainda da crença místico-religiosa do Empreendedorismo(?), o colaborador tende a tornar-se tenso e amedrontado diante dos futuros desafios(?). Daí a necessidade do uso didático de expressões fáticas para a conscientização do colaborador/empreendedor(?) sobre os novos tempos.
Estado: igual a Governo ou Ideologia. Entidade que atrapalha o empreendedor(?com impostos sempre excessivos. Por isso o Estado tem que diminuir, até ser reduzido a serviços mínimos como saúde, educação e segurança – conjunto mínimo de serviços que objetivam dar conta (ou conter) daqueles ainda desprovidos de consciência empreendedora, os chamados “pobres”. Numa projeção utópica, no dia em que toda a sociedade tiver essa consciência, o Estado desaparecerá!

 

-F-

Fazer a diferença: é aquela contribuição única, no momento certo, do mérito-empreendedor que gera resultados esperados. Na mística do Empreendedorismo é a crença de que em uma única ação, o Todo será alterado: um gesto de amor, plantar em um vaso, ir de bike para o trabalho. Pequenos gestos fazem a diferença. “Eu fiz a minha parte”. O Empreendedorismo crê que o Todo é a soma das partes: a soma das pequenas diferenças mudará, enfim, o mundo. No pensamento científico isso já foi desmentido como, por exemplo, na Gestalt. Mas o Empreendedorismo(?) é místico-religioso: assim como naquele momento da diferença na qual a força de trabalho se transubstanciará em Capital, também cada pequeno gesto somado mudará o Todo. >>>>>Continue lendo no Cinegnose>>>>>>>