A jovem branca vai apresentar o seu namorado negro para os seus pais, num evidente prenúncio de tensões raciais. Diversos filmes já exploraram esse tema. Mas nenhum como “Corra!” (Get Out, 2017) – afinal, estamos no século XXI e a crítica ao racismo e intolerância está no centro dos debates culturais. Agora, o jovem negro conhecerá pais liberais, esclarecidos e que votaram em Obama. Mas ainda assim há algo de errado e perturbador naquela família de típicos liberais democratas. “Corra!” é a grande novidade dentro do subgênero do terror racial: a combinação de elementos gnósticos (o controle da mente e o esquecimento induzidos pelas tecnologias do espírito) com a crítica social – aqueles que supostamente defendem a democracia racial, são os mesmos que cinicamente reproduzem a desigualdade.
Filmes sobre racismo possuem uma conotação social e humanística. São sempre veículos para mensagens liberais sobre a necessidade da tolerância, a importância da diversidade e do respeito. Mas em geral o tom é exatamente esse: liberal – o outro, vítima do racismo e intolerância, é sempre visto por um olhar abstrato da compaixão.
A vítima do racismo nunca é visto como consequência de uma estrutura política e econômica concreta que reproduz a desigualdade, mas apenas como vítima da ignorância e teimosia de pessoas que ainda não perceberam que estamos no século XXI.
Principalmente filmes norte-americanos onde sabemos que o máximo em crítica social e econômica que as mentes bem pensantes daquele país chegam é pela tradição liberal – a igualdade e liberdade muito mais como um pressuposto moral e cultural do que a necessidade da construção de um sistema econômico de igualdade de oportunidades concretas no dia-a-dia.
Os oito anos do primeiro presidente negro da história dos EUA, Barack Obama, saudados como a concretização dos princípios liberais de liberdade e igualdade, foi a mostra de até onde vai a abstração da crítica liberal – um presidente negro em um país no qual os conflitos raciais e intolerância não só persistiram como cresceram.
O terror racial
Corra! (
Get Out, 2017), do estreante diretor Jordan Peele (também ator e comediante) quer mostrar esses limites e contradições da elite liberal através de um interessante subgênero dentro do horror: o terror racial.
Desde o clássico
A Noite dos Mortos Vivos de George Romero (1968, incisiva crítica ao racismo através da metáfora dos zumbis) até chegarmos ao recente
A Chave Mestra (2005, sobre invasões de corpos por meio da magia negra), há no
underground cinematográfico uma certa tradição de filmes que combinam o racismo com o horror.
Mas em
Corra!, Peele faz uma surpreendente combinação de tons que hora passa pela explícita crítica social (os vilões são liberais e eleitores de Obama), hora pelo humor (o clássico alívio cômico do amigo do herói engraçado) e hora por uma perturbadora narrativa em “slow-burn” (a lenta revelação de pistas para o espectador) que lembra o clássico
O Bebê de Rosemary de Polanski.
E tudo isso com conotações simbólicas e mesmo gnósticas: a condição do negro como um estrangeiro em um mundo que quer submetê-lo ao esquecimento de si mesmo, para ser melhor controlado por uma elite que supostamente quer libertá-lo do racismo.
Para além das diversas camadas narrativas do filme (social, política e horror),
Corra! É essencialmente sobre o sentimento inquietante de você sentir que não pertence a lugar algum. Peele utiliza a abordagem racial e sátira à elite liberal norte-americana como veículos para uma discussão gnóstica: o racismo como a faceta mais visível de uma ordem que quer submeter a todos o esquecimento de si mesmo.
O Filme
Apesar da narrativa
slow-burn que dará o tom do filme,
Corra! começa em alta rotação: vemos um jovem negro caminhado por uma rua de classe média à noite, perdido, e brincando com a situação conversando com o seu amigo ao celular. As ruas estão vazias, e um carro começa a segui-lo. O jovem pressente algo errado e tenta despistá-lo, mas alguém já saiu desse carro para ataca-lo e arrastá-lo para dentro daquele veículo.
Corta para os protagonistas do filme: Chris (Daniel Kaluuya) e sua namorada Rose (Allison Williams) se preparando para apresenta-lo a seus pais. Rose diz que ainda não contou a seus pais que ele é negro. Chris desconversa, mas ele é cauteloso. Seu amigo, também negro (um histérico e paranoico policial de segurança privada) aconselha-o a não ir. Mas Chris está apaixonado.
A partir do momento que ele chega à casa dos pais de Rose, sente algo perturbador no ar. Claro, os pais Dean Armitage (Bradley Whitford) e Missy (Catherine Keener) parecem bastante amigáveis. Mas, há algo de exagerado, como se fizessem tudo para impressiona-lo.
Os indícios em
slow-burn começam a ser jogados: Dean é neurocirurgião e Missy é psiquiatra hipnoterapeuta. Todos muito cultos, liberais e eleitores de Obama, como fazem questão de demonstrar.
Mas os empregados são negros (Dean se desculpa, dizendo que foi herança do pai): o jardineiro chamado Walter e a governanta chamada Georgina têm comportamentos estranhos, como fossem as pessoas sem emoções tomadas pelos aliens no filme
Invasores de Corpos (
Body Snatchers, 1956).
Mas, como se costuma fazer em situações de tensão racial, Chris tenta desculpar o comportamento deles: afinal, está com uma mulher branca e talvez Walter e Georgina devam estar com ciúmes.
O ponto de virada na trama é o momento em que Missy consegue hipnotizar Chris apenas com os movimentos da colher em uma xícara de chá: Chris parece que mergulha num poço escuro – ela chama isso de “afundar no esquecimento”. Ele acorda na sua cama e acha que tudo foi um pesadelo. Mas percebe que, por algum motivo, parece ter sido condicionado a parar de fumar.
Definitivamente, há algo estranho muito além do que a tensão racial de um homem negro que vai visitar os pais da namorada branca. O clímax é o encontro com os vários parentes da família, em um bingo promovido pelos pais de Rose. Estranhamente, todos aqueles festeiros brancos começam a elogiar os dons físicos e a abençoada herança genética de Chris. Há algum interesse subterrâneo daquelas pessoas por ele. E tudo o que começa a pensar é fugir dali.
>>>>>Continue lendo no Cinegnose>>>>>>>