No filme “Ele Está de Volta” (2015) Hitler aparece no século XXI e vê os neonazistas na Alemanha. Irritado, chama-os de “fracotes!”. Para ele, não passavam de imitadores. Mas aqueles que realmente entenderam o seu legado não estão nas ruas: são os gestores em governos e corporações. Chamada pela mídia corporativa de “megaoperação de combate às drogas”, a ação na Cracolândia no Centro de São Paulo, comandada pelos “gestores” prefeito João Doria Jr. e o governador Alckmin é uma irônica confirmação daquele filme. Escavadeiras, demolições e a internação obrigatória de dependentes químicos são evidências de como dois princípios do legado nazifascista inspiram esse século: o “embelezamento do mundo” e o “princípio das ruínas”. Um dos melhores estudos do fenômeno nazi, o documentário “Arquitetura da Destruição” (1989) descreve que projetos nazistas como a “Nova Berlim” acreditavam que o embelezamento somente seria possível através da destruição e higienização social. Projetos atuais como “Nova Luz” e o Programa “Cidade Linda” em São Paulo parecem confirmar a maior fé de Hitler: as ruínas da arquitetura monumental nazi de uma Alemanha derrotada inspirariam as gerações futuras.
O leitor certamente já deve ter assistido, ou pelo menos ouvido falar, no documentário do sueco Peter Cohen Arquitetura da Destruição. Produzido em 1991, é um dos melhores estudos sobre o Nazismo. Traça o percurso de Hitler e de seus mais próximos colaboradores com a arte - do sonho de se tornar artista ao ponto em que suas antigas gravuras foram utilizadas como modelos para colossais obras arquitetônicas, depois de chegar ao poder.
Mas o documentário principalmente descreve o princípio fundamental de “embelezamento do mundo”, vinculado diretamente a “limpeza”: urbanística, arquitetônica, médica e racial – a eliminação dos judeus como doença que poderia “deformar o corpo da nação”.
Embelezar o mundo, nem que para isso fosse necessário destruí-lo.
Enquanto a guerra acontecia, Hitler e seu arquiteto (e favorito para sucedê-lo) Albert Speer trabalhavam freneticamente na construção de obras monumentais na Alemanha, principalmente o projeto da “Nova Berlim” – mais de 20 mil apartamentos de judeus e inimigos do regime foram demolidos no projeto de reconstrução de Speer. Cem mil pessoas foram desalojadas, presas e finalmente confinadas em campos de concentração.
A Nova Berlim de Albert Speer
Princípio das Ruínas
Porém, o mais curioso por trás desse conceito de “embelezamento do mundo” estava presente o chamado “Princípio das Ruínas” idealizado por Hitler e Speer. Eles imaginavam um futuro distante em que todos as gigantescas obras nazistas em mármore e granito ruiriam, formando ruínas pitorescas que seriam descobertas por arqueólogos. Então, ficariam estupefatos e inspirados diante da grande revelação dos princípios que motivaram essas obras, estremecendo sociedades futuras – Hitler falava explicitamente esse princípio em seus discursos.
Speer costumava apresentar para Hitler desenhos de como seria o aspecto daquelas obras monumentais em ruínas e cobertas pela vegetação.
O paradoxo desse princípio é que a vitória na guerra não era tão importante para Hitler (talvez isso explique os nazistas travarem uma guerra moderna com objetivos e estratégias antigas). Para ele, a queda da Alemanha e as ruínas da sua arquitetura monumental inspirariam gerações futuras.
E parece que Hitler com a sua, por assim dizer, “arquitetura subliminar” estava com razão. Além da propaganda de Goebels, o “princípio das ruínas” e do “embelezamento do mundo” da dupla Hitler/Speer não só perpetuaram para a História os valores da eugenia, racismo e intolerância mas, principalmente a associação da arquitetura e urbanismo com a destruição ao invés da integração.
O projeto "Nova Luz"
Da Nova Berlim à Nova Luz
Setenta anos depois, na maior cidade da América Latina, ao invés da “Nova Berlim” temos o projeto da “Nova Luz”; e no lugar do “embelezamento do mundo”, a instituição do programa “Cidade Linda” comandada por João Doria Jr. Um prefeito que, certa vez, considerou a cidade de São Paulo um “lixo vivo” e “filme escabroso” com pancadões (bailes funk) “patrocinados por atividade criminosa”.
A região conhecida por Cracolândia (no centro da cidade de São Paulo onde a partir dos anos 1990 desenvolveu intenso tráfico de drogas com a comercialização e consumo principalmente do crack livremente pelas ruas) sempre foi pensada como um grave problema social no qual furtos, mendicância e prostituição gravitam em torno do problema das drogas.
Programas sociais da Prefeitura como Recomeço e Braços Abertos sempre visaram o acolhimento, tratamento e reintegração à sociedade das almas perdidas nessa região da São Paulo.
Tudo mudou com a chamada “megaoperação de combate ao tráfico de drogas”, como a mídia corporativa quis que parecesse - ação policial em blitzkrieg com bombas, prisão de traficantes e apreensão de drogas e armas na manhã do domingo do dia 21 que culminou com a decisão da Justiça de autorizar a Prefeitura de internar à força dependentes químicos que forem encontrados pelas ruas da Cracolândia.
Porém essa foi apenas a superfície midiática: as imagens do prefeito Doria Jr. subindo em uma escavadeira posando para fotografias; caminhando rápido e trajando uma jaqueta negra ao lado de um secretário entre lixo, escombros e ruínas em uma rua da região; prédios, pensões e bares sendo demolidos a toque de caixa inclusive fazendo vítimas entre moradores pegos de surpresa apontam para algo mais - o decreto de 19 de maio declarando aquela área como “utilidade pública” o que permitirá desapropriações sumárias e demolições de quarteirões inteiros.
O pretexto do combate às drogas esconde uma intervenção urbanística radical que, assim como a Nova Berlim dos anos 1940, implica no “embelezamento” por meio da higienização social e destruição.
>>>>>Continue lendo no Cinegnose>>>>>>>